Gustave Courbet, o pintor da vagina mais conhecida da história da pintura, disse de si próprio em certa ocasião que era “l’homme le plus arrogant de Paris” (o francês é aqui propositadamente desnecessário, rimando de forma assaz arrogante o conteúdo do que se escreve com a forma como se escreve). Não é que toda esta prosápia de Courbet viesse de se considerar como na “origem do mundo”, mas antes que soubesse que a construção de uma carreira, sobretudo na passagem do Romantismo ao Realismo, usando a recente e folhetinesca grande presse como um poderoso auxiliar, dependesse da elaboração de um sistema de poses e posições de choque. É um pouco parecida a pose de Albert Serra no mapa do cinema contemporâneo. O catalão com cara de Fassbinder, enfant terrible do cinema espanhol gosta de dizer palavras pesadas: os actores são todos os idiotas, a Adèle de Kechiche uma burguesinha, os seus filmes são à prova de bala, etc. Embora ganhe os olhos apontados a si que tanto deseja, Serra também se põe a jeito para que os seus bebés (os filmes) sejam deitados fora com a água do banho (o discurso hiperbólico e cheio de si). Se isto em parte é verdade, e as reacções extremas a Història de la meva mort (História da Minha Morte, 2013) confirmam-no, dá-se por vezes esse valente mistério: odiar-se o homem e amar-se a obra. Mas não sigo por aí até porque não me interessam esses antagonismos normalmente empobrecedores.
Sangue. É verdade que se sente uma continuidade qualquer entre as deambulações metafísicas de D. Quixote e Sancho Pança em Honor de caballería (Honra de Cavalaria, 2006), as travessias dos três Reis Magos pelo deserto en El cant dels ocells (O Canto dos Pássaros, 2008) e agora as figuras de Giacomo Casanova e o Conde Drácula: em todos há essa vontade de dar de barato o contorno, a figura histórica mais que conhecida, para partir para o desenho da linha do horizonte, o vento em planos escuríssimos e cortados ao meio, as árvores mágicas e os cogumelos, a conversa sobre o amor, os caracóis ou a ambição de fazer um dicionário de queijos. Mas se isso é um facto também é verdade que Història assume mais a historicidade das suas figuras. Porquê? Porque é mais divertido fazer um filme onde as personagens vestem trajes históricos e perucas do que num bar com amigos. Explicação do próprio. E com essa historicidade, um duelo, uma oposição.
O confronto de dois modelos de desejo. Um mais solar, o de Casanova empunhando a soberba e o riso histriónico, assente sobretudo no charme e na conquista feminina. O outro mais dark e nocturno, o de Drácula, um desejo expresso na necessidade de possessão e submissão, do que não vai de encontro às coisas, mas que faz as coisas vir até ele. Por detrás deste confronto estão, de um lado, a atmosfera racionalista do século XVIII, do enciclopedismo, do discurso crítico prolixo sobre a Europa e o Cristianismo, dos finos prazeres da comida e do corpo, e do outro o romantismo do século XIX, mais pulsional e violento, menos comunicativo na forma de exprimir as suas emoções. Conflito expresso ainda no sangue: Casanova fica com o sangue da virgindade de uma das suas conquistas nas mãos (uma cena de que Courbet podia ter pintado o close up); Drácula extrai o sangue, mais acima, no pescoço, contra a vontade das suas vítimas. Mas é ainda o vinho sobre o ganso, ou o sumo de romã no boca de Casanova que mostra o sangue ou o vermelho como elemento que conduz a uma dimensão mais grotesca. E eis-nos chegados à
Merda. Numa altura em que Saló (Saló ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) de Pasolini anda a ser distribuído pelo Correio da Manhã como filme erótico ao lado de … La vie d’Adèle (A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2, 2003) – talvez isto esteja mesmo tudo ligado – é fácil de perceber que a escatologia ou as fezes já pouco incendeiam morais. A metodologia alquímica de Serra, expressa num dos diálogos do próprio Casanova é converter, tal como Midas (ou vá, quase como Midas), a merda em ouro. Essa transformação remete para o seu método: câmaras digitais, equipa reduzida composta por amigos, actores não profissionais (Vicenç Altaió que faz de Casanova é um curador de arte de Barcelona, por exemplo) e improvisação com base em situações. Não há planos, há um filme feito na montagem com colagem de perguntas a respostas que nunca aconteceram na rodagem, há um formato de trabalho, o 4/3 que, posteriormente é recortado para 16/9. Tudo isto implica quase a criação ex-novo, própria da pós-produção digital mas assente em premissas analógicas de filmagem. O objectivo é precisamente essa transformação do repetível no performativo (o que vemos no grande ecrã, de facto, nunca aconteceu), do historicamente reconhecível num novo sentir. A metamorfose que implica esse novo sentir é ela uma outra tarefa atribuída ao grotesco. Cabe aí ao espectador desencantar a poesia no cortar do crânio de um boi à machadada ou no espetar a cara num traseiro de uma donzela para lhe provar o “rosário de bombons”. Estamos como Casanova a provar a bolachinha depois da “cagada”, a experimentar a passagem entre o riso do bon vivant e o grito abissal do príncipe das trevas. Nessa passagem há vislumbres dourados na paisagem, é o
Ouro. O ouro do Leopardo de Locarno que conquistou, mas também a capacidade de solicitar o mágico oliveirianismo sem Manoel de Oliveira lá dentro, a pintura da Inglesa e do Duque, num Rohmer sem O ou gravidezes (já disse que o sangue feminino é o da pureza e da menstruação). O ouro nesse (desse) plano de penetrações a rir e à janela, cujo movimento de vai e vem faz com que Casanova, na excitação, parta um dos vidros com a cabeça. Ninguém se ri, excepto ele. E aquilo que podia ser um gag (e não faltam testemunhas, há uma mulher cá fora sentada) é um momento sério. Será? Senti-o, desconfortavelmente. E ainda há a terna amizade masculina com o “Sancho” Pompeu (Lluís Serrat) nesse travelling pelo bosque. E a bosta que “vale alguma coisa” nas mãos do sedutor. Pouco depois Casanova termina os seus factos, as suas memórias que culminarão na sua morte. Essa morte estará sempre ligada ao mais poderoso dos desejos, o desejo que triunfa, o de Dracula. O sedutor morre mas com ele o cinema do sedutor vive, o sedutor Serra.