Apenas cinco meses separam a estreia em Portugal de dois filmes sobre o consagrado estilista francês Yves Saint Laurent. Se o primeiro, de Jalil Lespert, toma o nome inteiro do “biografado” por título, o segundo, de Bertrand Bonello, apanha apenas o apelido – é mais elegante. E a verdade é que essa elegância passa de alguma maneira para o filme (apresentado em Cannes este ano), ainda mais se usarmos como termo de comparação o outro. Não o vamos fazer aturadamente, porque isso requereria um exercício de análise diferente, mas é incontornável a menção ao facto mediático, até pela evidente distinção entre os dois trabalhos.
Assim, muito brevemente, se falamos de biopic puro no caso de Yves Saint Laurent (versão apadrinhada por Pierre Bergé, co-fundador da YSL), pelo esforço que se faz para sintetizar uma vida em 106 minutos, com todo o tradicionalismo estéril do género – que pede constantemente uma subversão autoral, caso contrário, cria produtos de linha de montagem (como é o caso) – o mesmo não se pode dizer de Saint Laurent, que em 150 minutos faz um sumo concentrado de quase dez anos da vida do estilista (1967-1976), o seu período mais frenético na criação artística, e o que ficou marcado pelo processo de consolidação da marca, após a saída da maison Dior. Bertrand Bonello, com efeito, realiza um filme sobre uma figura do universo da moda e deposita nele um sentido de gosto visual apurado, o chamado estilo, um pouco à semelhança de A Single Man (Um Homem Singular, 2009) filme único, até agora, do estilista americano Tom Ford, que não é mais do que um trabalho bem vestido, concretizado com a mesma elegância com que se definem as costuras de um blazer. Mas Bonello é cineasta, e isso significa um acrescento de “pano para mangas”.
Em L’Apollonide (Apollonide – Memórias de Um Bordel, 2011), filme que antecede esta recente obra de Bonello, podemos encontrar certos traços de “irmandade”: a concentração numa determinada parcela temporal – correspondente às viragens de época, à mudança de padrões – e num microcosmos vivencial muito fechado (aliás, um concreto reflexo disso é o parco uso de exteriores), onde a beleza coabita com a degradação, os fantasmas da mente, a fragilidade humana. Saint Laurent é a variante masculina de L’Apollonide, em que se preserva uma estrutura muito precisa de cruzamento onírico; às lágrimas de sémen de Madeleine em L’Apollonide equivale a cena das serpentes na cama de Saint Laurent (fazendo sensivelmente lembrar Snakes, uma curta-metragem de Patrick Jolley), infiltrações do subconsciente nas feridas abertas pelo sonho. Ainda no que respeita às opções formais, Bonello recorre novamente à divisão do ecrã, em alguns momentos, numa espécie de arrumação das cores nos quadros de Mondrian, e aproveita esta técnica para multiplicar a visualidade/visibilidade e consciência do espectador: temos a apresentação sazonal de colecções ladeada de imagens documentais da guerra da Argélia, ou – outro exemplo – dípticos e trípticos de um desfile com os respectivos bastidores à vista.
Sinalizando bem a sua liberdade artística, Bertrand Bonello disse em várias entrevistas que, mais do que “narrar”, o importante era conseguir “criar um ambiente”, porque justamente “quando tentamos contar tudo acabamos por não contar nada”. Cada pormenor de Saint Laurent concorre, assim, para nos guiar numa experiência, ao invés de articular uma história. Saint Laurent pode então, na liberdade interpretativa que também nos é deixada, repousar numa só imagem: o quarto de Proust, o leito de Proust, a solidão de Proust. Não repito “Proust” por preguiça, repito o seu nome porque ele paira como um espírito sobre todo o filme, algumas vezes evocado pelo próprio Yves Saint Laurent como o seu maior impulso inventivo; até a duração (relembro, 150 minutos), essa demora num ambiente, pode adequar-se perfeitamente à noção do tempo proustiano.
E não, não ficou esquecido o vistoso elenco do filme – Gaspard Ulliel, Jérémie Renier, Louis Garrel, Léa Seydoux, Helmut Berger… este último com evidente carga de referência viscontiana, nomeadamente ao herói romântico Ludwig (Luís de Baviera, 1972) –, apenas me parece que a intenção é antes promover a superfície, ou seja, Bonello não procura a profundidade “humana” das personagens, mas a sua plasticidade (em sentido estilístico) como manequins em contexto, inscrevendo-as num estável projecto de pose. E um quê de protagonismo recai então sobre o animal, esse sim, sem atenção à pose, na mais instigadora cena de pathos em Saint Laurent: o cão de Yves a sofrer uma overdose depois de ter comido os comprimidos espalhados pelo chão, na infeliz ressaca de uma das orgias do dono. Ficamos entre o riso e o sentimento de miséria. Não será miserabilidade, mas poderá ser melancolia adornada.