Mesmo numa estância balnear em que está mais frio do que calor (aquele vento cortante e húmido), poucos são os veraneantes que se aventuram ao Cine-Teatro de Vila do Conde. Aqueles que preenchem os longos dias a ver curta-metragens estão lá de propósito, a grande maioria vinda de Lisboa ou do vizinho Porto, muitos de outros países. Gente do cinema — realizadores a apresentar as suas obras, críticos para vê-las e escrever sobre elas — que se (re)encontra na simpática e acolhedora cidade entre o Rio Ave e o Oceano Atlântico (onde se come muito bem). Uma Cannes pequenina, à medida portuguesa. Só estive lá três dias: perdi muita coisa e achei outra tanta.
Canto do cisne: a competição nacional
2012 será o último ano de um período em que o cinema português voltou a merecer alguma atenção no estrangeiro (não só os famigerados prémios como as passagens em países tradicionalmente fechados à nossa cinematografia, caso dos EUA). Esta selecção de curtas-metragens é, então, uma espécie de canto de cisne. Em 2011, a produção parou, devido à hesitação do novo Governo em lançar a Lei do Cinema. As repercussões dessa (in)decisão (que durou um ano) irão sentir-se em 2013 (e talvez 2014). Espera-se que ainda haja um ou outro filme feito por carolice, mas nunca as 18 curtas-metragens que estiveram em competição em Vila do Conde este ano (para não falar nos outros festivais que as acolhem, como o IndieLisboa e o DocLisboa).
Sem ter visto todas as curtas portuguesas em competição (faltou-me ver, entre outras, Sinais de Serenidade por Coisas Sem Sentido de Sandro Aguilar), a qualidade média das mesmas foi bastante aceitável, se bem que à falta de momentos muito baixos correspondeu uma falta de momentos altos. Ainda assim, Manhã de Santo António de João Pedro Rodrigues, que colheu justos aplausos, é digna de relevo. A realidade vista pela óptica do filme do terror, os adolescentes como mortos-vivos a desarranjar brevemente a ordem no centro da cidade. Planos rigorosíssimos (fotografia de Rui Poças) a encerrar a extravagância e o humor da premissa. O campo/contra-campo do miúdo e da assustadora estátua de Santo António na Praça de Alvalade assim como a Ofélia nas águas do lago do Campo Grande ficaram na retina. A Comunidade de Salomé Lamas, documentário num parque de campismo da Costa da Caparica, teve as maiores gargalhadas. Receou-se que fossem só das idiossincrasias das “personagens” que apresenta, no entanto a realizadora guarda-lhes um carinho que resgata a curta da simples paródia. Um filme competentíssimo (óptima montagem) que resultaria tão bem ou melhor num formato mais longo.
O destaque negativo vai para O Nylon da Minha Aldeia de Possidónio Cachapa, baseada num conto seu, uma curta falhadíssima, mas também, escreva-se, de todas, a que arriscou mais. No meio de filmes muito compostinhos (planos fixos e bonitinhos), de histórias pequenas e subtis (às vezes, de mais), uma tentativa de romanesco (académica, é certo, à maneira de Giuseppe Tornatore) não caiu bem. O Nylon sofreu pelas suas falhas e pelas suas pretensões (que pediam outra duração). Antes isso do que a indiferença que causou, por exemplo, Zwazo de Gabriel Abrantes, guardadíssimo, um vazio escondido na pose artística e no humor apichatponguiano. Num registo vagamente similar, Cacheu de Filipa César, plano-sequência sobre projecção, a encenação de uma prelecção sobre estátuas portuguesas perdidas e partidas na Guiné-Bissau, teve outro nervo. Nervo teve também Solo de Mariana Gaivão, vinte minutos de ansiedade protagonizados pela soberba Isabel Abreu; num universo talvez muito colado ao de Sandro Aguilar. Entrecampos de João Rosas, que cativou pela singeleza e apresentou um cineasta promissor, pecou pela trama demasiadamente idílica e pelo excesso de diálogos (que, em boa verdade, não são maus). De resto, curtas simpáticas — Libhaketi (O Balde) de Ico Costa; Sanguetinta de Filipe Abranches —, outras menos — As Ondas de Miguel Fonseca; A Cidade e o Sol de Leonor Noivo —, todas um tanto anódinas.
Estrangeirismos
A competição internacional teve, porventura, mais pontos fortes. Na animação, os curtíssimos e divertidos Flamingo Pride (Orgulho Flamingo, 2011) de Tomer Eshed (sobre um flamingo heterossexual às avessas com a sua “identidade”) e Pythagasaurus (Pitagossauro, 2011) de Peter Peake (da Aardman de boa fama) deixaram água na boca. O russo Mother and Son (Mãe e Filho, 2011) de Andrey Ushakov, numa toada mais triste, agradou pela leveza do traço e as linhas puras da história.
Naquela fronteira movediça entre o documentário e a ficção que se compraz em tirar a bússola ao espectador, deixando-o desnorteado, A Story for the Modlins (2012) do espanhol Sergio Oksman, às voltas com uma estranha família americana que se fechou em casa para preparar a posteridade (que lhes deitou tudo para o lixo), foi particularmente pungente. Mesmo que seja tudo mentira (portanto, ficção do realizador), a história (um factóide: Elmer Modlin, o pai, teve um pequeno papel em Rosemary’s Baby) é suficientemente interessante para que queiramos acreditar nela (que se publique!, alguém diria). I Morti di Alos (A Morte de Alos, 2011) de Daniele Atzeni tentou algo parecido, sem o mesmo sucesso (perde-se no final quando quer entrar na fantasmagoria). Ninouche (2011) de Valérie Massadian, uma pré-montagem (ou re-montagem) de Nana (2011), estreado há uns meses em Portugal, também joga vagamente nesse território, embora de outra maneira. É a própria representação da criança-protagonista que lhe dá esse tom incerto. Forçando um pouco a nota, até o documentário sobre uma pequena empresa fabril de Ben Rivers, Sack Barrow (2011), pode ser posto nesse limbo. Se por um lado é evidentemente “documental”, por outro, tem qualquer coisa de artificioso, por exemplo, quando se ouve a Smoke Gets in Your Eyes dos Platters (terá sido imaginação minha ou a dado momento, como que por magia, um homem desapareceu numa pequena nuvem de fumo?). E já esticando a corda completamente (é claramente ficção), Sin Título (Carta Para Serra) [Sem Título (Carta para Serra), 2011], em que uma tensão crescente sabota a contemplação em que a curta de Lisandro Alonso parecia querer cair.
Na ficção pura e dura, uma confirmação e uma vaga promessa. Tenis (Ténis, 2011) de Vladimir Dembinski prossegue muito bem a linha temática da família como batalha campal tão peculiar à moderna cinematografia romena; o brasileiro Os Mortos-Vivos (2012) de Anita Rocha da Silveira, parente próximo do português Manhã de Santo António, cujo primeiro plano é das melhores coisas de todo o festival, tem dificuldade em encontrar o equilíbrio entre as histórias de adolescentes (o melhor) e a parte mais fantasiosa. Palavra ainda para Les enfants de la nuit (As Crianças da Noite, 2011) que, não sendo grande coisa, foi a razão da presença do marido da realizadora Caroline Deruas em Vila do Conde, Phillipe Garrel de seu nome.
Outra estrela desta constelação cinematográfica (muito cinéfila) vista a cirandar pelo festival foi Thom Andersen (esteve em quase todas as sessões do mesmo), realizador e ensaísta, a quem foi encomendada uma das quatro obras de comemoração dos 20 anos das Curtas Vila do Conde. Reconversão (2012) investiga Eduardo Souto Moura, mais do que a sua obra, a sua (est)ética, ascética. Guiado pela voz monocórdica de Encke King, o espectador visita diferentes projectos do arquitecto portuense, ouvindo pequenos apartes e anedotas de Andersen e as grandes linhas de pensamento de Souto Moura. Um encontro profícuo.