O que Rudy Burckhardt faz em Cerveza Bud é pôr a sua fotografia e cinema, mais de 40 anos a produzir imagens.., num shaker para, com isso, abanar todo o seu universo autoral, misturando os motivos da sua street photography com a energia dos seus filmes avant-garde, de entre os quais se notabilizaram as curtas que fez em colaboração com o artista plástico Joseph Cornell.
Essa fotografia, ou melhor, essas fotografias que Burckhardt captou, sobretudo em Nova Iorque, eram atraídas por uma espécie de registo documental “do andar e dos modos de andar”, isto é, celebração do movimento das pernas (congeladas na foto, libertas dessa “imobilidade” nos filmes) e da forma como elas se apresentam ao olhar fixo de quem pára (projectando sombras sobre o passeio ou, falando de modo como quem fala de moda, permitindo inusitados jogos de padrões entre as formas das paredes e do chão da cidade e as roupas coloridas da multidão passeante que, indiferente a tudo, as atravessa).
Cerveza Bud mostra-nos isso, mas menos que numa série fotográfica como Sidewalk ou em filmes seus como, por exemplo, Square Times ou Julie, este último, muito à la Marey, retrata em 3 minutos o “andar” de uma corredora feminina que baptiza o filme – ou, pelo contrário, é o filme que a baptiza? O que se passa nos 22 minutos de duração do filme em análise é que o andar já não se faz a pé mas sobre “rodas”: as suas primeiras imagens, captadas no Central Park, transmitem a sensação de deslumbramento do seu autor pela fluidez dos movimentos de quem se passeia com um par de patins nos pés. Parece uma dança “surreal” que, logo depois, se “realiza” nas animações espontâneas de rua, com pares de bailarinos (homens com mulheres, homens com homens, etc.) a mostrarem o que valem ao som de músicas variadas; estas pessoas são convidadas a mexerem os corpos por ritmos latinos e africanos “de rua” ou por acção do disco sound que celebrizou os anos 80, junto com os grandalhões rádios portáteis que compunham uma espécie de grande banda sonora, viva, não oficial, da paisagem urbana.
A experiência com o movimento, muito fluído, quase em “estado líquido”, acompanha o olhar caleidoscópico sobre a vida na cidade de Nova Iorque, melting pot de tons de pele, orientações sexuais, estados de alma… Saímos do grande parque multicolor, multiétnico, e mergulhamos na cidade, mas só por breves instantes, já que ao mesmo tempo Burckhardt é atraído pelas clareiras de verde, da floresta e da vida vegetal microscópica que habita a cidade ao mesmo tempo que resiste a ela (resiste para se unir como num “perfeito casamento imperfeito”) – o interesse do Burckhardt-fotógrafo pelo pequeno, pelo in-significante, devedor da estética de Walker Evans, é uma das fontes da sua originalidade. A câmara aproxima-se das folhas das árvores, de nenúfares que boiam, leves, sobre a água com infinito menos esforço do que duas pessoas num barco, aquele que, num dos planos de Cerveza Bud, atravessa o lago… agora a água e o reflexo da luz sobre a sua superfície especular atraem a sua câmara-olho, como nos filmes que fez com Cornell.
Oscilando a montagem entre o movimento das ruas e a placidez da Natureza, Burckhardt “waldeniza-se” quase por completo, no sentido que Thoreau lhe deu e no sentido da leitura que Jonas Mekas fez do célebre filósofo norte-americano do século XIX. “De regresso ao Éden, mas não muito longe do frémito infernal da cidade”, Cerveza Bud diz isto, diz fazendo da imagem da mulher que caminha nua na floresta possibilidade para passar aos planos-documentos da flênerie anónima. Não há tensão entre estes dois universos: eles resistem (na nossa cabeça) para se unirem (pelo cinema). Este acto redentor – gesto próximo de Mekas – culmina nas cenas nocturnas, totalmente submergidas no mar de néons da publicidade a, por exemplo, uma marca de cerveja… ou a estabelecimentos de diversão e recreação “só para adultos”. Cá está outro fetiche de Burckhardt: a expressão gráfica – não confundir com pornográfica – do negócio semi-obscuro do sexo na cidade que nunca dorme. (Escrevo “semi-obscuro”, porque me pergunto a mim mesmo como pode ser totalmente obscuro aquilo que vive, sem ponta de pudor, da “exibição” dos corpos despidos que são exibidos na vitrina como carne fresca num talho…) Este é motivo para uma das suas found collages que notabilizaram Burckhardt como fotógrafo e às quais conferiu uma espécie de qualidade plástica alucinatória e selvagem nas suas “imagens em movimento”, talvez sob a influência de curtas do Free Cinema (exemplo de Nice Time de Alain Tanner e Claude Goretta), da Nova Iorque de Weegee e de filmes de Brakhage (Dog Star Man, entre outros).
O que vemos é o shaker a ser abanado ferozmente pela câmara de Burckhardt: tudo o que estava no início (de Cerveza Bud? Sim, mas também no início da Obra de Burckhardt, fotógrafo-cineasta, cineasta-fotógrafo) mistura-se com o que (se) passa agora na imagem e, de súbito, deixamos de falar em plano e começamos a falar de imagem no plural. E que súbito instante é esse? O da performance da showgirl que se exibe na vitrina. Estamos num bairro vermelho, delícia para o olhar com fome de movimento, de corpos, de luz e fantasia como é o de Burckhardt. A stripper lança o seu feitiço e dança ao som de uma música – seguramente não aquela que ouvimos, porque, como digo, nesta altura ja não falamos de plano, mas de montagem. O corpo insinua-se para a câmara, graficamente (de novo, não pornograficamente), e a montagem, em resposta, insinua-se “sobre” ela: uma sobreimpressão faz o shaker agitar-se mais rápido do que nunca.
O sólido, que virou líquido, agora vira gasoso, ali, no corpo-ecrã daquela magnífica mulher negra, onde se projectam imagens aéreas da cidade, símbolos de consumo, aviões, notas, papagaios, virgens renascentistas, recortes da publicidade, tudo cai, tudo gira, tudo se agita, tudo faísca dentro do shaker! Tudo se con-funde na “imagem gasosa” ultra-burbulhante (dou a volta aqui a um conceito de Deleuze) que já não é colagem nenhuma mas celebração da impossibilidade de nada mais se poder “colar” ou fixar à imagem. O shaker de tão agitado perdeu o conteúdo tangível (pois este se dissolveu no ar) e passou a ser “apenas” índice de movimento, habilidade “purificadora” que creio só ser acessível às grandes obras avant-garde.
(Este título consta do DVD com filmes de Burckhardt lançado recentemente pela editora norte-americana Microcinema.)