Desde o início que o cinema de Bruno Dumont anda à procura de um milagre. Na primeira metade da sua obra – pensamos nos seus três primeiros filmes – a inquietação está sobretudo apontada a uma dimensão material: é o desemprego e os problemas sociais no norte de França (La Vie de Jésus, 1997); as obsessões de um polícia solitário e traumatizado (L’Humanité, 1999); ou o sexo catatónico e a viagem como limites de uma relação (Twentynine Palms, 2003). Embora com este cunho carnal, o espaço de Dumont foi sendo já aí reconhecível pela procura de um substrato de espiritualidade, sendo que a cada novo filme se falava em nova encarnação simbólica da figura de Cristo: os seus protagonistas foram quase todos passando por essa “provação”.
Nos seus últimos filmes, sobretudo a partir de Hadewijch, 2009 (o primeiro filme do realizador a estrear entre nós) a procura desse milagre tornou-se ostensiva, literalizando-se quer nos temas quer na forma estilística de lhes dar corpo. É então sem surpresa que Hors Satan (Fora, Satanás) nos surja assim como uma depuração filosófica e intransigente do seu universo mas também da sua estética. O seu protagonista – mendigo, profeta, “Cristo” – vive num espaço selvagem, entre dunas, no limite de uma aldeia de três ou quatro casas em Côte d’Opale em França. Nela vive ainda uma jovem (a personagem é apenas “ela”), franzina, de aspecto gótico, rosto marcado. Juntos dão passeios pelos cenários naturais de Opale, espaço que o director de fotografia Yves Cape domina e “prolonga” na sua já longa história de inspiração artística (Turner, o pintor, a quem Dumont foi por sua vez buscar uma espécie de “lógica pictórica” para os seus planos, gostava muito de trabalhar aí). Estes percursos-balada, que fazem da natureza palco, são no entanto recolocados em perspectiva pela forma como as personagens olham e rezam ajoelhados no espaço, como se tivessem o poder de o transfigurar (os constantes contra campos sobre a paisagem após o olhar deles parece indiciar isso mesmo).
Mas não podemos deixar de pensar nas palavras recentes do realizador em Cannes quando fala do cinema como “espaço de barbárie”. Segundo ele, o cinema permite acolher, pelo trabalho sobre a sensação, uma dimensão de contradição que o pensamento não deixa. Quando o protagonista de Hors Satan mata de um só tiro, no início do filme, o padrasto da rapariga que dela abusava, ou quando este encontrasatã e com ele ritualiza “um exorcismo e/ou um orgasmo”, como alguém disse, percebemos a vontade de explorar uma zona de contradição, um “para além do bem e do mal” profundamente humano.
Mas e então onde reside esse milagre que Dumont procura tanto, vasculhando cerimonialmente nos assuntos da espiritualidade? Não está certamente no caminho escolhido. Neste sentido, Hadewijch não era nem mais nem menos bressioniano do que Hors Satan é Dreyer (e Ordet). Há inegavelmente, um traço grosso destes universos, que às vezes nem passa pelo dito “cinema da transcendência” mas até mais até pela forma de trabalhar (como o uso de não atores, por exemplo).
Mas dito isto parece que colocamos a força do filme, o seu “mistério”, na relação de percurso da natureza, no ritmo, no minimalismo da mise en scène e contemplação das suas personagens. Se o passado roubou a Dumont as primeiras ideias (e Dreyer e Bresson já tinham pensado “aquilo” tudo), o presente do cinema contemporâneo, corporizado nos espaços telúricos de Lisandro Alonso ou mesmo nos percursos “religiosos” de Albert Serra, não lhe permitem encenar o seu milagre. Eles já tinham feito as pessoas parecerem pequeninas ou deuses quando andavam pelo mundo. Nesse sentido, é impossível acreditar no solipsismo do filme de Dumont.
O mais irónico, parece-nos, é que a haver esse milagre em Hors Satan ele reside, inquietante, onde nunca foi procurado: no plano em que o mendigo sorri, apaziguado, perante a água das chuvas que escorrem do telhado, por exemplo, ou no momento em que lava as mãos ensanguentadas.