Este filme de John Carpenter, algo esquecido, subvalorizado como toda a sua obra, põe o cinema na boca do lobo, ou melhor, na “boca do medo” (cito aqui o título espanhol do filme), muito concretamente, onde as suas imagens estão a montante do acto da escrita, do acto de produção e leitura de um livro. A fonte do terror de In the Mouth of Madness (A Bíblia de Satanás, 1994) é a constantemente renovada verificação da incapacidade das imagens de fugirem a uma escrita diabólica que preenche, linha a linha, uma narrativa que é literária, ou seja, que é ante ou extra cinematográfica.
Para avançar nesta análise eu próprio preciso de me “reescrever”: aqui, neste aparentemente inofensivo genre movie, a fonte do terror, a tal “boca do lobo”, está nesse gesto de fazer das imagens (do cinema) marionetas de outras imagens (as da escrita). A inquietação é antiga, se formos ler alguns dos grandes teóricos da Sétima Arte. Já Eisenstein aproximara o cinema à literatura, quando, num texto notável (bem à frente do seu tempo), afirmou que o cinema de Griffith já estava prefigurado na arte literária de Dickens. Também Bazin falava de um cinema, que ali mesmo, nas imagens, plasmava os tempos verbais dos grandes autores romanescos. Mais tarde, nos anos sessenta, no encalço destas ideias, pensadores como Metz, Barthes e Pasolini perguntavam o que era o cinema, ao mesmo tempo que inquietavam os leitores com essa estranha paridade que a invenção dos Lumière tinha com as estruturas da língua e da literatura – bem mais significativa que a que tinha com o teatro, por exemplo. Depois, o filósofo pós-estruturalista Gilles Deleuze afirmou que o cinema era “escrita da realidade”, socorrendo-se de Charles S. Peirce para levar mais longe uma ideia já antes formulada por Pasolini.
Chegado a este ponto, saindo da teoria e de volta, idealmente, à prática (mas que prática é essa, aliás, que se pensa liberta da teoria?), interrogo-me como é que Carpenter, no início dos anos 90, coloca-nos a nós, espectadores do cinema, e elas, imagens do cinema, na boca do mal: o que acontece quando a “escrita do real” se faz, funde e confunde, na “escrita de um livro”? A história de In the Mouth of Madness vive dessa inquietação traduzida na pergunta: como pode ser real a ficção “escrita” num livro? Como pode a realidade do leitor, de um lado, coincidir com o universo do autor e protagonista da história lida, do outro? Como se faz ficção a realidade escrita no cinema? O protagonista, John Trent, interpretado magnificamente por Sam Neill, tem como missão descobrir o paradeiro do escritor-sensação do momento, uma espécie de Stephen King da nova geração, um tal de Sutter Cane, que faz “mad books” que toda a gente devora, digere e assimila, sem sequer sonhar que os limites entre realidade e ficção poderão estar ou vir a ser pisados. O Diabo e o seu fantoche, Sutter Cane, são os advesários do nosso herói? Nem tanto: o que o “desafia” é perceber onde acaba a ficção de horror que se escreve quase sempre um passo à sua frente… Trata-se, portanto, de uma questão quase geográfica, de localizar os limites (boundaries) de uma realidade que lhe fugiu ao controlo, desde que se atreveu a ler uns quantos livros do escritor bestseller desaparecido.
A cena em que John Trent, no seu carro, regressa sempre ao mesmo ponto, como que simulando o bloqueio mental do escritor ante a página em branco, é a imagem mais lapidar desta angústia de não se encontrar horizontes fixos, caminhos estáveis que nos devolvam à realidade das coisas. Este modo repeat angustiante, uma espécie de “eterno retorno”, é obviamente herdado de Hawks e do seu cinema circular, concentracionário e sincrónico. Carpenter tem-se entretido, muito habilmente, a fabricar variações deste traço hawskiano, por exemplo: em Prince of Darkness (O Princípe das Trevas, 1987), faz de sucessivas simulações em torno do “despertar de um sonho mau” metáfora precisa da inescapabilidade do Homem face ao mal que o habita; também em Big Trouble in Little China (As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim, 1986), e depois na obra-prima Ghosts of Mars (Fantasmas de Marte, 2001), força as personagens a regressarem ao covil do vilão, como que jogando sadicamente com essa ideia de “regresso” teorizada em Hawks. In the Mouth of Madness leva ao limite este dispositivo quando baralha, baralha e baralha o que é “escrita do real” com o que é “escrita do livro”, aquele que Sutter Cane está a escrever enquanto vemos o filme (e que reescreve sempre que o revemos?), e com o que é, pura e simplesmente, real ou ficção.
A síntese mais diabólica de todas estas ideias é-nos dada no incrível ending, apocalíptico como manda a perversa “bíblia de John Carpenter”. O protagonista vai assistir ao filme que levou ao grande ecrã o livro In the Mouth of Madness de Sutter Cane, livro esse que, como um vírus, espalhou o caos pela cidade – e pelo mundo! Num cenário de devastação, John Trent encontra uma sala de cinema onde passa o dito filme. No cartaz lemos o nome do seu protagonista: nada mais que o próprio John Trent – confusos com tanta clareza? Lá dentro, o filme começa a ser projectado e voltamos a ver, no filme dentro do filme, as imagens de In the Mouth of Madness, sendo que desta vez também o seu protagonista tem oportunidade de as ver, isto é, de se ver pela primeira vez na ficção fílmica. A reacção do Trent-espectador face ao Trent-personagem é de um desconcerto total: nas imagens do filme de terror, que acabámos de ver, o primeiro encontra motivo paródico suficiente para rebentar numa risada estrondosa.
O filme termina com um close-up ao rosto demencial deste espectador que ameaça rir até à morte [lembram-se de La fin absolute du monde, o filme pe(r)dido, que levava os espectadores até à morte, em Cigarette Burns?] perante as imagens de si mesmo, provenientes desse passado recente adaptado a livro e, agora, adaptado ao cinema. O riso, aliás, é desencadeado pela sua imagem a dizer, enfaticamente, “This is not reality! This is not reality!”. Nesta altura, onde estamos nós, espectadores de espectadores de si mesmos…, senão nessa dimensão da escrita que escapa ao real e à ficção, isto é, que rasa o absurdo – e, pelos vistos, hilariante – rosto da Morte, essa desgovernada e desgovernante não-ficção?