“Les amis des mes amis sont mes amis“, assim dita a epígrafe de L’ami de mon amie (O Amigo da Minha Amiga, 1987), filme final do ciclo “Comédias e Provérbios” de Éric Rohmer. À portuguesa, a frase seria qualquer coisa como “amigo do meu amigo meu amigo é”: tudo muito inocente. No entanto, Rohmer aproveita a ambiguidade do termo ami em francês — tanto pode significar amigo como namorado — para oferecer logo no título — “o namorado da minha amiga” — a confusão que se instalará no filme.
L’ami de mon amie é uma comédia (romântica?) de enganos, em que os casais se trocam e baldrocam, à boa maneira de Beaumarchais. Aliás, Rohmer bem podia ter roubado a epígrafe de La règle de jeu (A Regra do Jogo, 1939) a Jean Renoir: “Cœurs sensibles, cœurs fidèles,/Qui blâmez l’amour léger,/Cessez vos plaintes cruelles:/Est-ce un crime de changer?/Si l’Amour porte des ailes,/N’est-ce pas pour voltiger?/N’est-ce pas pour voltiger?/N’est-ce pas pour voltiger?“.
E é à maneira do teatro que o espectador é apresentado às personagens (e actores que as representam), todas nos seus vinte e poucos, bem nascidas, bem falantes, cada uma no seu local de trabalho (que não terá importância alguma), antes sequer de aparecer o título do filme: a tímida Blanche; a extrovertida Léa; o seu namorado Fabien; o galã Alexandre; e a namorada deste, Adrienne. Estas encontrar-se-ão e desencontrar-se-ão (emocional e fisicamente) nas ruas de Cergy-Pontoise, o frio e moderno subúrbio de Paris, o principal cenário de L’ami de mon amie. Nesta geografia tão geométrica, Blanche é o ponto convergente em que se desenharão primeiro uma linha, depois duas ou três linhas paralelas, mais tarde um triângulo (amoroso), e finalmente um quadrado (e talvez ainda um pentágono).
A rigidez da mise en scène — a máxima simplicidade do campo/contra-campo enquadrada no clássico 4:3 — e do cenário dá forma à trama que é tão líquida como a água de que Léa tem medo e que junta Fabien e Blanche. Os elementos água e terra, como também as correspondentes cores azul e verde, terão uma importância desmedida na distribuição dos casais (e na determinação de quem fica de fora). Só que nada é tão simples: o casal que se junta na água só se descobre apaixonado numa caminhada (portanto, na terra), no único momento (e que extraordinário momento) em que não há diálogo — perante a loquacidade das personagens de Rohmer, a solenidade do silêncio é absolutamente estrondosa.
Rohmer diverte-se também a trocar as voltas ao espectador, como se este fizesse (e faz) parte do jogo: se as personagens nunca se fixam numa cor (assinalando os seus distanciamentos e aproximações), na brilhante cena final (será um happy end?), os pares acabam mesmo com as cores trocadas, dando a ideia de que com um bocadinho de sorte (ou azar) tudo poderia ter corrido de uma maneira diferente (e de que, se calhar, estão de facto trocados). L’ami de mon amie é um divertimento delicioso, de uma leveza de que só os grandes mestres são capazes; um filme soberbo.
L’ami de mon amie passa dia 31 de Julho (terça-feira), às 22:00, no Teatro do Campo Alegre no Porto.