A pergunta que inaugura a rubrica Cadáver Esquisito é matreira, por isso, proponho começar o texto trocando-lhe as voltas: não “o que é” mas “o que há”? Se o leitor não vai responder, então faça o favor de afiar o lápis que eu vou ditar a lição, tipo a tipo.
Há críticos que se munem de factos que rodeiam o filme para os pôr à prova no momento do visionamento da obra – a experiência pessoal da mesma é secundarizada quando começam a escrever. Para estes, a crítica é uma colagem de trivia com verificação e aferição de factos. Há críticos que decompõem o filme em pedaços e avaliam atomicamente a sua “performance”. Para eles, o cinema funciona como uma autópsia (“argumento bom + realização satisfatória + interpretações muito boas = filme 4 estrelas”). Há críticos que procuram formar trends, antecipando-se à maioria na descoberta de “autores” que reúnam certas condições para fazerem parte do seu panteão pessoal. Estes críticos encontram nos filmes um bom pretexto para afirmarem o seu instituído (indiscutível?) bom gosto – eles não vêem, eles provam filmes. Há críticos que fazem do principal objecto da crítica não o filme, nas suas qualidades precisas, individuais/conjunturais, mas a capacidade que este tem ou não para produzir reflexão e é essa reflexão que motiva e sustenta o seu trabalho. Para estes críticos, o cinema é pretexto de comunicação. (LM)
Há críticos que têm a necessidade de se pôr constantemente à prova como pessoas estimuladas pela exigência mediática de debitar incessantemente “banais expressões de originalidade” semântica, que ganham o show em relação aos filmes. Críticos esses que não se confundem com outros que partem das imagens, das suas formas e conteúdos (não são “esquisitos”), para prolongar uma expressividade poética que tem por objectivo justapor lógicas de criação artística. Estes são os artistas que vêem o cinema, embora deles possa não andar arredado um télos também avaliador. E que dizer dos críticos que só se lembram do “apaixonado”, da componente emocional e que recusam (ou não podem lidar com) a tarefa de comparar, integrar, relacionar, de fazer chocar os cânones institucionais? Quão longe pode levar uma composição triangular, em penumbra ou a manipulação de um objecto? Na maioria das vezes é esse “trajecto de monge” a forma mais límpida de revelar a pessoa, os seus ideais e sensibilidade. Os filmes já têm tudo, inclusive contêm descaradamente quem os (d)escreve. (CN)
Há críticos tão solenes, tão sisudos, que vão ao cinema como quem faz uma tarefa, como limpar o pó ou apanhar a roupa. Apostados em livrar o cinema de qualquer contágio do prazer, encolhem o filme, de tanto lhe quererem espremer o sentido, a mensagem, o subtexto, a estrutura, o que for. Deixam-no seco. Deixam-nos, leitores-espectadores, à seca. A prosa árida destes críticos é a expressão perfeita da tempestade de areia que varre tudo e só deixa meia-dúzia de fórmulas, um par de esquemas para enquadrar cada obra. Antes aqueles que choram, que se enfurecem, que aplaudem de pé, desamparados. Os que não têm medo do ridículo e, por isso, se descobrem com um olhar deslumbrado. Podemos amar tantos esses críticos como os filmes de que falam. Às vezes, até mais do que os filmes. Ou antes dos filmes (o prazer de conhecer uma obra-prima antes de lhe pôr a vista em cima). Por eles, uma nova “política de autores”. Os que escrevem sobre cinema. (JL)
E depois há pessoas que não gostam de críticos. Pessoas que recusam qualquer pensamento crítico de um filme – “Uma imagem vale mais que mil palavras” – como se as imagens se explicassem a si próprias. Pessoas que se esquecem que qualquer que seja o lado para que olhem são ecrãs que estão vendo, ecrãs com imagens, imagens aos montes (imagens a monte, selvagens). Ou então porque o cinema não é para ser pensado, é uma arte do sensível e da técnica, onde só interessa o espectacular (o cinema começou como coisa de feira, mas hoje já é um senhor crescidinho) e como é criado o espectáculo; a técnica açambarca tudo o que se possa discutir sobre um filme. Mas também há pessoas que adoram os críticos, que seguem, repetem e papagueiam as opiniões de outros, vêem os filmes em torrentes (e em torrents também) absorvendo-os à guisa de “esponjas cinéfilas” e, tal como as esponjas marinhas, não têm consciência. Mas não há ninguém imune a uma crítica, ou a um crítico. Todos reagem ao exercício de pensar o cinema e como com os camarões ou se gosta ou se incha. (RVL)