Numa altura em que é “pecado capital” introduzir uma dimensão politizada no discurso artístico (e presupuesto no cinema), a escolha para abrir a minha colaboração na secção raridades recai sobre um filme do cinema novo brasileiro virtualmente impossível de ver hoje em dia. Trata-se de Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra, um dos três únicos nomes que se referem sempre nesta corrente (os outros são Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos).
Os Fuzis (1964), Os Cafajestes (1962), dois dos filmes mais conhecidos de Ruy Guerra, costumam ser etiquetados como sendo as obras mais ligadas à politização temática e experimentação estilística de uma segunda vaga do cinema novo (ainda mais radical que a primeira), comummente chamada de “udigrudi” numa paródia ao termo underground. Já este Os Deuses e os Mortos pertence a uma terceira e derradeira fase que vai de 68 a 72, denominada fase “alegórica”, expondo o exótico nacional sob uma influência do tropicalismo e do barroco.
A intenção do cineasta moçambicano naturalizado brasileiro foi fazer uma espécie de western brasileiro (as suas referências eram o Yojimbo do Kurosawa e o Per un pugno di dollari do Leone), sendo que o sul da Bahia, a terra do Jorge Amado e dos cacaueiros, serviu o propósito. O filme de Guerra vê-se hoje como uma tripe psicadélica (em que muitos leram o esgotamento das fórmulas do próprio cinema novo), na qual se juntam quer uma audácia formal (dificilmente repetível pelos padrões de hoje), quer uma audácia político-poética que situa precisamente a condição do brasileiro dos anos 30 entre o seu condicionalismo cultural e económico e uma força vital e mágica vinda sabe-se lá bem de onde.
Essa dimensão vital advirá, arriscamos, sobretudo da figura feita cadáver andante, o Homem Sem Nome (Othon Bastos), protagonista, que tendo levado sete balas no corpo não morre. Após recuperar da chacina quer intrometer-se entre dois clãs de coronéis que lutam pelo poder na região, isto é, que lutam pela terra e pelo cacau. “O cacau é o ouro. O ouro é a lei”, diz-se. Mas essa magia, que é imune aos números, às exportações internacionais do Brasil, é também veiculada pelo som místico, ritualista (algumas músicas têm o dedo de Milton Nascimento que também tem um papel no filme) que povoa o “misticismo boa gente” que a estrutura do filme quer ter. Este avança por diálogos/monólogos longos, de um “shakespeareanismo sertanejo” único e com o incrível trabalho de pular obstáculos que é a câmara de Dib Lufti. A câmara baila entre as personagens, percorre todos os espaços em planos-sequência de perfeita exploração, contra a planificação estática, num elogio meio inocente da improvisação. Nunca há aqui um espaço egotista para exaltar o virtuosismo estético. É antes a lógica do mais um, ir com eles, onde a história for. Há um plano incrível que percorre lentamente um grupo enorme de guerrilheiros de um dos gangues, com armas, sentados nos degraus a toda a volta da praça principal da cidade, à espera do grande confronto. Uma cena depois, com a batalha em elipse, um plano muito aberto mostra esses lutadores agora agonizando por toda a praça. Tudo sangue, poeira e gemidos.
E esse sangue constante (sob o qual se funda o império), como constantes são também os mortos e mortos-vivos (que habitam as casas dos coronéis e os caminhos de mato) e a lama, a poeira, a galinha na mão do coronel Santana, são tudo sinais que ficam da vitalidade e honestidade de Os Deuses e os Mortos. É que na sua dimensão poética, política e performativa, infelizmente esquecida pelo tempo, passava uma enorme estalada do cinema ao sistema. Nessa altura em que tudo era sonho ou sangue, as aventuras do Homem Sem Nome foram um fracasso. Já Herzog, com quem Guerra viria a trabalhar dois anos depois em Aguirre, der Zorn Gottes (Aguirre, o Aventureiro, 1972), disse que aquele era um dos melhores filmes de todos os tempos. Conhecemos a têmpera do alemão. Excessos à parte é um filme que merece sem dúvida redescoberto. Fazê-lo é, claro está, um acto político.