Esta crónica rouba o nome à estação de televisão de Max Renn, o protagonista de Videodrome (Experiência Alucinante, 1983) de David Cronenberg. A personagem interpretada por James Woods, que deverá ser o “anti-herói” mais cínico no universo do realizador canadiano, caracteriza do seguinte modo o programa ideológico por trás da sua “Civic TV”: “eu ofereço aos meus espectadores um escape inofensivo para as suas fantasias e frustrações. Quanto a mim, isso é uma acção social positiva”.
A crónica homóloga, que trago ao mundo agora, nestas linhas, seguirá uma práxis semelhante: vigilância sobre as possibilidades de escape (não ouso dizer “inofensivo”, já que, ao contrário de Max, sirvo menos bem para cínico) que a nossa caixa mágica oferece aos seus tele-espetadores (ah, não subscrevo o novo acordo ortográfico), no que à programação cinematográfica diz respeito. Não farei acção social positiva, isso deixo para os filmes e para aqueles que os “grelham” na grelha – como em tudo na vida, há bons e maus (viradores de) frangos e é, para distinguir uns de outros, que poderá sintonizar este novo canal, a partir de… agora.
Brainstorm (Projecto Brainstorm, 1983) de Douglas Trumbull. Há dias apercebi-me deste título, um sci-fi distópico que anda a passar no canal TCM, sim, aquele que exibe filmes, normalmente clássicos americanos não legendados, a seguir aos desenhos animados do Cartoon Network. Lendo a sinopse disponibilizada pelo canal fica-se a saber menos sobre a história do filme e mais sobre a história que assombra o filme: a morte da sua actriz principal durante as rodagens, nada menos do que a lendária Natalie Wood. Morreu por afogamento, depois de ela e o marido, Robert Wagner, terem convidado o jovem actor Christopher Walken para passar um relaxante fim-de-semana de Acção de Graças no iate do casal. Uma violenta discussão entre Walken e Wagner desfechou trágica e misteriosamente com a morte da actriz, tinha esta 43 anos.
Este trivia, que aparece destacado na própria sinopse do filme, algo pouco usual nos filmes da TCM, é significativo na medida em que condicionou e quase acabou com o filme que estava a ser realizado por Douglas Trumbull, figura cimeira dos “efeitos especiais” em Hollywood (que se notabilizou pelo seu trabalho em 2001, Blade Runner e que colaborou recentemente com Malick na sua obra-prima, The Tree of Life). Enquanto realizador, Trumbull tinha feito o insosso Silent Running (O Cosmonauta Perdido, 1972), cult movie irremediavelmente datado, que mistura o espírito new age, flower power, com uma retórica ecologista “puxa-lágrima” que com dificuldades comoverá o espectador moderno. A sua experiência à frente de um filme era limitada. Contudo, soube levar a sua avante e acabar o filme, já sem a sua star e contra a vontade dos produtores, que pretendiam abortar o projecto para açambarcarem o dinheiro do seguro de Wood. A insistência de Trumbull não foi um acto de teimosia apenas alimentado pela vontade, típica nos bons trabalhadores, de “acabar o que se começou”. Na verdade, Brainstorm convive melhor com a morte da sua protagonista do que qualquer outro filme. Dito de outro modo: a morte de Wood deu uma nova vida à sua modesta, e hoje algo enfadonha, premissa futurista.
Brainstorm narra a história de um grupo de cientistas e a sua invenção prodigiosa, um aparelho que permite ao utilizador “experienciar” algo vivido por outrem, acesso não a uma realidade paralela, estilo “videojogo” hiperreal, mas, antes, concretização de todas as potencialidades, sensitivas e fenomênicas, de “se ser outro”. (Reparem, caros cinéfilos, não só de “se ser John Malkovich” mas de se ser quem quer que seja!) O filme de Trumbull põe as suas personagens a gabarem-se desta invenção durante grande parte do primeiro acto, mais do que, por exemplo, a explorarem todas as potencialidades deste novo aparelho. Depois, a história politiza-se – o exército quer deitar mão ao “brinquedo” dos nossos cientistas-heróis – e muda de registo quando uma das principais “cabeças” por trás do projecto sofre uma síncope fatal, enquanto estava ligada, em modo de gravação, ao aparelho.
A partir daqui, deixamos de nos interrogar sobre como é que Trumbull “disfarça” a ausência da sua protagonista, a falecida Wood, especulando sobre eventuais usos estilizados de sombras ou de “contra-campos” demasiado longos ou de uma sósia nas cenas que ficaram por filmar (quem viu Oliver Reed “reencarnado” em Gladiator, ciente de que este morrera pouco depois do começo das rodagens, perceberá melhor esta fixação mórbida). Deixamos de estar obcecados com a presença de um morto e, já no filme, começamo-nos a interessar q.b. pela morte daquela personagem e pela possibilidade que se abre ao protagonista, interpretado por Christopher Walken, de poder vir a ver e a sentir o que ela viu e sentiu: a morte.
É ridículo que Walken puxe dos galões de cientista para obter a gravação, aquela que permitirá ao Homem saber “o que é morrer”. É ainda mais ridículo que alguns dos seus pares desvalorizem esta “descoberta acidental”. Tudo isto é ridículo já que o interesse em torno da gravação deixou de ser científico, político ou económico e passou a ser – como o filme acaba por assumir, tarde e a más horas – puramente religioso: terá ela visto Ele, o grande Outro? Conseguiremos nós ver aquilo que ela viu? E um dia saberemos o que Ele vê, lá de Cima? Perguntas que o espectador coloca a si mesmo ainda mais intensamente, por saber que a morte daquela personagem mima a morte real da star do filme. Também afecta o espectador moderno de TV, porque estas mortes poderão ser (re)gravadas na sua box – e foram-no, sem grande arrependimento, no caso deste vosso recém-parido cronista.