Não nos quisemos esconder no escuro da sala de cinema e, por isso, abrimos a rubrica Sopa de Planos com uma colheita daqueles que são os nossos momentos cinematográficos de eleição que têm como cenário a praia. Cinema ocioso, semi-despido e com areia na engrenagem? Não obrigatoriamente.
Se hoje U samogo Sinevo Morya (À Beira do Mar Azul, 1936) tem o estatuto de filme intocável, à data escrevia-se: “pouco mais será do que pores do sol, filmados com uma beleza insuportável”. O que se queria atingir com estas palavras era a incapacidade do filme de Boris Barnet para tomar uma posição crítica face à realidade concreta da altura. Mas é curioso que no caso concreto o crítico russo tenha imbicado com os pores do sol, isto porque basta a sequência a abrir e a fechar (e há outras) para perceber que se há chegada, se há partida, amor ou ressurreições, eles vêm todos desse mar incompreensível, imenso, revolto, mostrado em planos que se sucedem, intermináveis, num caos que justifica toda a ilha do Cáspio. Embora a chegada de Aliosha e Yussuf à ilha já contenha esses planos graníticos na praia, em que vêem, encaram e põem à prova Masha pela primeira vez, é difícil fugir à sequência que toda a gente recorda. O plano que escolho pertence ao início dessa sequência e nem sequer deixa ver a praia, só um pequeno assomo de areia. É aqui que começa umas das mais extraordinárias cenas de alegria que o cinema nos mostrou. Aliosha, prostrado, sob a areia e Yussuf de olhos vazios a contemplar o mar, sentem a morte de Masha. O que se segue é o milagre da sua salvação (e como correm felizes em direcção ao mar mal a vêem!; dir-se-ia que podiam correr para sempre) que terminará nesse trio a dançar em pleno funeral de Masha. Depois de todo este vigor, belo, jovem, cerimonialmente lírico, a praia nunca mais foi a mesma. O cinema tão pouco (que o diga Jean Vigo ou François Truffaut) e, mais importante do que tudo, nem nunca mais nós fomos os mesmos.
Carlos Natálio
Imagem tirada do magnífico filme de Morris Engel e Ruth Orkin, Little Fugitive (1953). Exemplo de como um simples mergulho na praia pode ser problemático. Lennie faz um pequeno intervalo na sua busca pelo irmão mais novo, o “pequeno fugitivo” que intitula o filme. Com os olhos postos no mar, tão tentador…, tira as suas calças de ganga, sujas dos “jogos de rua”, e a sua T-shirt, onde despedaçou um tomate para simular o sangue da ferida que o tiro de caçadeira do seu pequeno irmão não abriu, brincadeira que lhe custou caro. Vai ao mar e quando regressa depara-se com um casal, que se envolve amorosamente como num quadro de Magritte, ocupando soberanamente o pequeno quinhão de areia onde o rapaz tinha deixado a sua roupa, que, entretanto, já ameaça “fossilizar”. Lennie dá conta de si uma, duas, três vezes, pede para lhe devolverem a roupa sobre a qual poisa, sem pedir licença, o “indiscreto” casal de pombinhos. E é também com indiferença que o homem lá acaba por “desenterrar” as calças e a T-shirt e as devolver ao seu sôfrego proprietário. O Tati de Les vacances de Mr. Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953) espreita nas entrelinhas deste pequeno e frágil gag, ainda que na ausência do aparato burlesco.
Luís Mendonça
Se este plano lhe parece demasiadamente feliz é porque é um sonho. Sim, um homem olha uma mulher, uma lindíssima mulher que se banha com os raios solares. Olha e põe-se a fantasiar, uma fantasia à la Bay Watch, com corridas au ralenti à beira mar e beijos como os de From Here to Eternity (Até à Eternidade, 1953). Quem está por de trás desta cena é (talvez) o mais romântico dos realizadores americanos, Blake Edwards com um filme de dois dígitos: 10 (Uma Mulher de Sonho, 1979). Se esta cena é de sonho, o que vem depois é do mais real possível: a fantasia transforma-se em coisa concreta e a broad salta-lhe para cima ao som do Bolero de Ravel (e com o marido todo queimadinho do sol a gemer no hospital). 10 é um verdadeiro filme de Verão (e a praia é só uma consequência), cheio de uma luz quente e uma alegria embriagada e lasciva (há rabos e mamas e muitos corpos aos saltos). Mas depois o que nos fica é um delicioso filme sobre essa coisa que é o saber comunicar com quem mais se ama, It’s easy to say… I love you.
Ricardo Vieira Lisboa
Melvil Poupaud morre na praia. Não no sentido de estar quase a alcançar uma coisa e de deixá-la fugir no último momento. Morre na praia no seu último momento, era o pouco que ainda podia alcançar no tempo que lhe restava. A doença prolongada (leia-se: cancro) fulminara-lhe a vida aos 31 anos, destruíra-lhe “o tempo todo pela frente”. Resolveu deitar-se na areia, fechar os olhos (com uma lágrima) e desaparecer contra o pôr-do-sol mais piroso do cinema. Assim se passa Le temps qui reste (O Tempo que Resta, 2005), de François Ozon, quando se chama Romain. Uns verões antes, noutras praias (a mesma praia?), chamava-se então Gaspard, era tímido, ficava nervoso com as raparigas, e, ainda assim, tinha sucesso com elas. Três andavam atrás dele e ele ficava indeciso, entre uma conversa com uma e outra conversa com outra e mais uma dança com aquela, sem saber qual escolher. Na brisa amena de fim de tarde de Conte d’été (Conto de Verão, 1996), tinha o tempo todo pela frente, podia perder-se nos labirintos amorosos de Éric Rohmer. Um disparate era só um disparate.
João Lameira