Comenta-se muito a “domesticação” de David Cronenberg e esquece-se a de Abel Ferrara: 4:44 Last Day on Earth (4:44 Último Dia na Terra, 2011), o novo filme do nova-iorquino que começou no gore (e roçou a pornografia), aproxima-se do apocalipse com uma placidez quase budista (ou como daquele pregador budista, um valente oxímoro, imagem e som constantes no iPad da jovem Skye).
Longe vão os tempos da violência gráfica e sacra [mais do que Martin Scorsese, e principalmente quando trabalhava com o argumentista Nicholas St. John, Ferrara foi o católico desesperado do cinema americano, que via na violência a (possível?) expiação dos pecados das suas personagens] de Ms. 45 (Vingança de uma Mulher, 1981), com a sua freira assassina, de Bad Lieutenant (Polícia Sem Lei, 1992), com Harvey Keitel em pelota no meio de uma igreja, de The Addiction (Os Viciosos, 1995), com os vampiros como símbolos demónicos do vício, só para ir buscar alguns (e ficam outros tantos, importantíssimos, fora desta enumeração). No entanto, se não está tão à mostra, não é difícil descobrir a perversidade de Ferrara: na mesma placidez que parece contradizer o resto da sua obra (não tanto a recente). É que filmar o fim do mundo com esta serenidade só pode ser perverso.
Durante grande parte do filme, Cisco (Willem Dafoe, um daqueles actores de que se pode dizer que é incapaz de ser mau) e Skye, o casal que protagoniza 4:44, estão encerrados (voluntariamente) no seu apartamento, ligados ao mundo através da televisão (em que se vêem as únicas manifestações de terror perante o futuro da humanidade e, em contra-ponto, aquele pivot de tele-jornal de uma calma exasperante) e dos inúmeros gadgets da Apple (alguém mais cínico poderia escrever que o filme não passa de um anúncio, bastante estranho é certo, da marca), com que (in)comunicam com os entes queridos antes da morte certa (monólogos paralelos mais do que de diálogos, guerrilhas verbais mais do que apaziguamento). Das poucas vezes que se vê o “lá fora” — quando Cisco vai ao terraço assistir a um suicídio, quando ele procura os amigos (ou melhor, a droga que largou: valerá a pena continuar “limpo” quando o mundo vai acabar?; valerá a pena não pecar quando o mundo está a acabar?) —, não se dá conta de grande comoção: apesar dos avisos, as ruas parecem tão pacíficas como numa noite comum (o que talvez seja um dos problemas).
Fujo à explicação ambientalista (redutora) para o que vai acontecer naquela noite às 4 e 44 da madrugada, que dá a Al Gore uma aura de Nostradamus dos nossos tempos: preferia que não houvesse qualquer explicação. Contudo, nem preciso de fugir muito, a principal razão, a que se sente pelo menos, para este castigo dos deuses (de Deus, já que é um filme de Ferrara) é a apatia dos homens, que, nem neste momento, se importam muito com o que lhes vai acontecer. Chega-se à conclusão de que não é a tranquilidade que Abel Ferrara filma, mas, sim, a indiferença. Cisco é o único que grita em desespero, que se debate, que se enfurece (mesmo o suicida cai sem um ai); os outros preferem uma distracção: os amigos, um copo, a cocaína; a namorada, a meditação e a pintura que ficará para uma posteridade que não há-de vir, gesto que tenta negar a condição finita das coisas. O sexo é o último (verdadeiro) refúgio para eles, quando os corpos tomam posse das mentes e se esquecem, por segundos, do seu destino (é o momento mais sensual do filme, dos momentos mais sensuais numa filmografia que não tem falta deles, em todas as acepções da palavra). O amor, que não se dissocia do corpo (nunca para Ferrara), é a redenção que resta, num mundo em que nem já a violência tem lugar.
No fim (e poucos fins são tão finais), depois daquele verde bíblico [a lembrar uma das pragas de The Ten Commandments (Os Dez Mandamentos, 1956) de Cecil B. DeMille)], desmentindo a escuridão das luzes que se apagam em Nova Iorque, uma luz branquíssima ilumina tudo, incluindo os corpos deitados por cima da serpente do pecado original. They were angels already.