Pode recuperar-se o que nunca se teve? Não fossem as passagens no IndieLisboa (foi Herói Independente em 2008) e na Mostra de Cinema de Hong Kong, ambos organizados pela Zero em Comportamento (honra lhe seja feita) e Portugal apenas teria visto um filme de Johnnie To em sala.
Visto é como quem diz: Tie saam gok (Triângulo, 2007) esteve para aí uma semana em cartaz. E também não era exactamente de Johnnie To (ou não era só de Johnnie To); era um daqueles filmes em episódios, uma colaboração com Ringo Lam e Tsui Hark (mais dois pesos-pesados do cinema de Hong Kong).
Em boa verdade, Johnnie To não anda propriamente nas bocas do mundo, nas mesmas bocas em que andaram os nomes de Wong Kar-Wai ou John Woo. De entre os grandes cineastas de Hong Kong, foi o que teve menos sorte: a sua maturidade artística coincidiu exactamente com o ínicio da decadência do cinema do ex-protectorado inglês (que, por sua vez, coincidiu com a altura em deixou de ser um protectorado inglês). Neste milénio, a China acabou com a independência da ilha em todos os sentidos. E To, ao contrário dos seus conterrâneos famosos, nunca quis sair de lá. Por isso, também, vale a pena recuperá-lo (ou descobri-lo, tanto faz).
Com tanto intróito, mais parece que este Am zin (Running Out of Time, 1999) não se aguenta por si só. Essa seria a maior injustiça de todas e não a quero cometer. Am zin (e o mesmo se pode escrever de outros filmes do realizador, o que é notável) seria suficiente para reconhecer em Johnnie To o grande mestre do cinema de acção puro e duro da actualidade. Acção como movimento, gesto, decisão, até imobilidade [Cheung fo (The Mission, 1999) e a melhor cena de acção dos últimos vinte anos]. Acção como Hollywood já não sabe ou não quer fazer (desde meados da década de 90, desde John McTiernan e do bom velho James Cameron). Sem o aviltamento dos tarefeiros anónimos nem as pretensões dos “autores” de blockbusters (sim, é um remoque a Christopher Nolan), ou mesmo dos estilistas da montagem cada vez mais (entre)cortada. Johnnie To é um classicista sem paralelo no cinema actual.
Apesar de alguns truques de pós-produção duvidosos (as acelerações, que, ainda assim, têm a ver com a ideia do tempo a esgotar-se, que dá o título, inglês, ao filme), a realização de To é, à falta de melhor palavra, adequadíssima (não é ilustrativa; é justíssima): a mise-en-scène está muito próxima da coreografia — e o bailado não se reduz às (poucas) cenas de artes marciais, os corpos ocupam o espaço certo na altura certa; a montagem é sempre intencional (nunca se duvida da morte de alguma personagem ou se alguma coisa ocorreu ou não, a não ser que seja esse o efeito pretendido). O cinema de Johnnie To respira a tal sabedoria dos mestres clássicos, que sabiam onde colocar a câmara (e por que é que o faziam) e tinham toda sequência, plano a plano, corte a corte, na sua cabeça (e não dependiam dos montadores para lhes salvarem as cenas — sim, é outro remoque a Christopher Nolan, embora se deva escrever que ele não é caso único, bem pelo contrário).
Por seu lado, a trama de Am zin assemelha-se vagamente à de alguns clássicos (esquecidos?) do cinema americano dos anos 70 — por exemplo, o extraordinário e muito nova-iorquino The Taking of Pelham One Two Three (1974) de John Sargent [que, à sua maneira e para me contradizer um bocadinho, foi recriado por Spike Lee em Inside Man (Infiltrado, 2006); o remake com John Travolta e Denzel Washington, que não vi, é doutras contas]. Na base de tudo está um jogo do gato e do rato em que um polícia e um ladrão se envolvem — para os habitués de Hong Kong: os fabulosos Lau Ching-Wan (o farrusco polícia) e Andy Lau (o ladrão galantérrimo) —, mais pelo prazer de jogar do que por qualquer obediência à sua profissão (as motivações das personagens são suficientemente levianas para não terem importância alguma). Uma brincadeira que contagia todo o filme, que se vai tornando num exercício lúdico ele mesmo. Apesar de tudo, não se anda longe dos temas da amizade, da honra e do sacrifício tão vulgares em Hong Kong (toda a obra de John Woo), se bem que (re)vistos por olhos menos ingénuos (ou mais abertos à diversão).
Outro ponto altíssimo de Am zin é a forma como são tratadas as inescapáveis cenas românticas: quase sem palavras, fazem-se dos olhares que se trocam, do que os olhos vêem e não vêem, dos gestos desnecessários ou que ficam a meio, do beijo roubado e da carteira que se tira do banco do autocarro (outro jogo, em que o ladrão e a vítima trocam de lugares). Cinema de acção, portanto.
Pode recuperar-se o que nunca se teve? Neste caso, deve-se. Ainda se vai a tempo.