Veneza está ali, onde se agarra a grande bota para a calçarmos até ao joelho. Parece que nos travestimos de mulher ou nos fantasiamos de westerners, mas não, definitivamente não: apenas iniciamos aqui duas viagens pelo território imaginário do cinema no território muito concreto da bela cidade italiana. Aviso: nenhuma fronteira foi mal tratada no decurso deste mais ou menos desajeitado exercício as if.
A acreditação já está na mala, a mala já está pronta, eu também. O manual de italiano para totós vai na bagagem de mão e o totó sou eu que não vou a lado nenhum. Mas se fosse a algum lado ia a Veneza, direitinho. Não para ver os canais e andar apaixonado nas gôndolas, nem para ver a praça de São Marcos. Não. Iria a Veneza para ir ao festival: Mostra internatizonale d’arte Cinematográfica della Biennale di Venezia (Bienal? mas aquilo é todos os anos…). Então, se vou esvoaçar o meu espírito para esses lados (onde os realizadores probretanas bebem água da torneira, porque a da garrafa é muito cara) ao menos que prepare as visualizações, com tanta coisa para ver é melhor não me perder com o novo do Spike Lee.
Chego de avião (se é para inventar vou no melhor, pena já não haver o Concorde) e nem passo pelo hotel nem nada, uma lancha direitinha para a primeira sessão: Sennen no yuraku (The Millennial Rapture, 2012) de Kôji Wakamatsu [trailer]. Wakamatsu está a tornar-se no grande concorrente de Johnnie To em termos de produção, este ano já vai em três filmes. Um foi 11·25 jiketsu no hi: Mishima Yukio to wakamono-tachi (2012) [ou simplesmente Mishima] que esteve no Un Certain Regard que é o equivalente francês da secção Orizzonti onde este último está. Mas tome-se atenção este ano Wakamatsu não é o único a fazer uma dobradinha nos festivais (aqui, na Itália da minha imaginação, também há dobrada como a lá de casa): Brillante Mendonza [Captive (2012) com Isabelle Huppert e Sinapupunan (Thy Womb, 2012)] e Ulrich Seidl [Paradies: Liebe (Paradise: Love, 2012) e Paradies: Glaub (Paradise: Faith, 2012)].
Acaba a sessão, bebo um copinho de água e zarpo para a sessão seguinte: The Company You Keep (2012) de Robert Redford (também na secção Orizzonti). Então mas porquê, quando tenho ali o Paul Thomas Anderson, o De Palma e o Malick à mão de semear? Pois bem, a coisa prende-se com esse dilema do cinéfilo-divulgador que percebe que por vezes há que insistir nos fraquinhos (até parece que o Redford é fraquinho…) porque os grandes já têm a papa feita. Para começar Redford fez com Lions for the Lambs (Peões em Jogo, 2007) e The Conspirator (A Conspiradora, 2010) dois filmes (infelizmente subvalorizados) que revelam que a sua praia é de facto um certo cinema liberal, muito mais que os drama(lhõe)s do seu início de carreira. Depois, o filme é escrito por Lem Dobbs, colaborador regular de Soderbergh [em particular do recente Haywire (Uma Traição Fatal, 2012)].
Depois do jantar (a tal dobradinha) vou à secção paralela dos críticos – International Critics’ Week —, em que só há primeiras obras de jovens realizadores e vejo um filme de uma senhora que não traz nenhum peso à costas: Xan Cassavetes com Kiss of the Damned (2012). Pois bem este parece ser o ano dos filhos de realizadores, tivemos o filho do Cronenberg — Brandon Cronenberg —, que foi a Cannes mostrar ao mundo Antiviral (2012) [sobre o qual se disse ser um Cronenberg à moda antiga; trailer], e também tivemos o filho de Jaques Demy e Agnès Varda — Mathieu Demy — que se estreou com Americano (2011) [trailer]. Pois bem, a filha de John Cassavetes não só tem o peso dos filmes do pai (nos quais entrou como actriz várias vezes), mas, mais importante que isso, tem a obrigação de fazer esquecer os filmes do seu irmão Nick Cassavetes.
E de barriga cheia volto para casa, ainda a tempo de dormir com a minha fraldinha e o meu macaquinho de pelúcia.
Ricardo Vieira Lisboa
Eu também (não) vou a Veneza. Vou, procurando fazer das palavras sábias de Serge Daney todo um programa. O crítico francês dizia que adorava andar e falar: andar permitia-lhe falar com as pernas, já falar dava-lhe a sensação de andar com a boca. Eu, pela minha parte, vou tentar percorrer o espaço com a escrita, isto é, andar com as letras, pelo que ao caro leitor endereço o convite a uma viagem imaginária por estes linhas… até ao mais antigo festival do mundo.
Na sua 69.ª edição irei parar imediatamente num dos seus títulos mais chamativos: Passion (2012) de Brian De Palma. Conhecemos as paixões avassaladoras no cinema do norte-americano, vimo-las aliás muito quentes na sua obra-prima máxima, Femme Fatale (Mulher Fatal, 2002), mas não são só as paixões carnais que moldam a mente lúdica de De Palma. A primeira grande paixão é, e é sempre nos seus melhores filmes, o próprio cinema. Para quem gosta de se auto-intitular “plagiador” (aliás, este seu filme é um remake de uma fita do francês Alain Corneau…), De Palma promete afinar a sua linguagem metafílmica nesta sua mais recente paixão – é que o “roubo de uma ideia” está no centro de um plot maquinado por mulheres, as duas tão fatais quanto este trailer (já de si poderosamente insinuante e voyeurista) nos permite entrever.
A seguir proponho uma visita atenta ao incontornável The Master (2012), o mais recente filme de Paul Th. Anderson, que conta com Philip Seymour Hoffman e Joaquin Phoenix no elenco e que respira cinema por todos os poros. Baseado na história enigmática do fundador da religião/seita da cientologia, este filme tem tudo para propiciar paralelismos temáticos e visuais com o antecessor There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007), onde a criação de uma congregação religiosa marcava uma ruptura violenta entre os donos da fé e os donos do dinheiro ou, mais concretamente, do “ouro negro”. Espero ainda interpretações “maiores que a vida” por parte de dois dos mais talentosos actores do cinema norte-americano. Estou cada vez mais convencido que Paul Th. Anderson é o único realizador contemporâneo com arcaboiço para reclamar a herança pós-griffithiana de Orson Welles e a sua fraqueza por gestos megalómanos e personagens egotistas e auto-destrutivas ou o seu muito moderno “americanismo”. Os cartazes, teasers e trailers são, sozinhos, pequenas obras-primas a remeter para… outra obra-prima? Esperemos que sim.
Ainda entre os americanos em competição — será, neste momento, impensável que um Leão, de prata ou de ouro, não vá parar a um qualquer sobrinho do Tio Sam —, tenho de reservar um lugar a To the Wonder (2012), filme que Terrence Malick realizou e montou em tempo recorde, interrompendo assim o seu ritmo de produção quase decenal, marca de que o seu “autorismo” vivia também de um determinado recolhimento, distância e experiência do tempo, ou melhor, de uma certa respiração… Pois agora Malick lança dois filmes em dois anos e tem preparados mais filmes para muito breve. O filme que concorre ao Leão de Ouro, pelas imagens já tornadas públicas, antevê um regresso aos sentimentos e imagiário de um Days of Heaven (Dias do Paraíso, 1978). História de amor, de fé e de poderosos (re)encontros, eis um novo Malick e a promessa de maravilhosos “deslumbramentos”.
Saindo de terras americanas, sugiro a revisitação de Brillante Mendoza, prolífico cineasta filipino que esteve há muito pouco tempo em Cannes e que, como já fez antes, faz o bis em Veneza. Tratando um tema que lhe é caro, os problemas da maternidade numa sociedade empobrecida e iníqua [viram o magnífico Foster Child (2007)?], Sinapupunan (Thy Womb, 2012) [trailer] conta a história de uma mulher que parte em viagem à descoberta de uma substituta que dê ao seu homem aquilo que ela não pode dar: um filho. Será, estou certo, um dos castings mais brutais que passarão pelo certame de Veneza. O espectador nacional sabe bem até onde os sentimentos e as acções por eles motivados podem ir nos filmes de Mendoza, ou então não viu atentamente Lola (2009).
Também todos nós temos obrigação de ser os primeiros a dar as boas-vindas ao regressado Takeshi Kitano, ele que venceu o Leão de Ouro em 1997 com a sua obra-prima Hana-bi (Fogo de Artifício, 1997). Agora regressa mas para continuar Autoreiji (Outrage, 2010), filme que teve estreia internacional em Cannes há dois anos e que deixou indicações de um Kitano de regresso à sua melhor forma dentro do por si celebrizado género yakuza. O espectador português poderá comprovar a qualidade do comeback, desde logo, se o “primeiro tomo” chegar a estrear nas nossas salas, tal como tem sido anunciado ao longo de vários meses. Contudo, os tradicionais adiamentos sucessivos, neste caso duplamente ESCANDALOSOS, levam-me a recear o pior: um direct-to-DVD ou, se ainda houver RTP2 nessa altura, um direct-to-TV. Kitano não merece isso. Pode ser que a presença de Autoreiji: Biyondo (Outrage Beyond, 2012) [trailer] na competição de Veneza ponha termo a este escândalo.
Bem longe da competição, e fazendo desta viagem um bom pretexto para revisitar a história do cinema, dava ainda corda aos sapatos em direcção a uma reposição épica, Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980) de Michael Cimino, filme que merecerá também uma recuperação histórica pela mão da Criterion Collection em Novembro, e da exibição de um inédito, o ensaio documental American Dreams: Lost and Found (1984) de James Benning, no qual a vida de um jogador de baseball é “posta a comentar” alguns dos mais marcantes episódios da história norte-americana da segunda metade do século XX.
Aqui vamos nós!
Luís Mendonça
O 69.º Festival de Veneza começa no dia 29 de Agosto e termina no dia 8 de Setembro. O júri da competição será presidido pelo cineasta norte-americano Michael Mann.