Apesar dos louvores generalizados a obras menores como Match Point (Match Point, 2005) e Midnight in Paris (Meia-Noite em Paris, 2011), dois dos maiores sucessos de bilheteira do realizador, Deconstructing Harry (As Faces de Harry, 1997) conserva-se como o último grande filme de Woody Allen. Marca, de resto, uma linha na carreira do nova-iorquino: a partir dali, nunca mais foi a mesma coisa.
Se o escritor-protagonista do filme (felizmente, Dennis Hopper e Dustin Hoffman recusaram o papel e teve de ser Woody Allen a representá-lo), que sofre de um bloqueio artístico (e se chama, convenientemente, Block, Harry Block), dá-se conta de que, no meio das relações-ralações, das traições, do medo do compromisso, o trabalho é a única coisa que lhe traz felicidade (a única felicidade que sempre teve), que as personagens que criou são (numa sequência onírica, literalmente) a companhia que lhe resta, Woody Allen, que até aí vivia, sobretudo, através da obra (ou expiava, como Block, os seus remorsos e culpas na arte), encontrou a ventura na vida vivida (justamente, na sua união mais improvável e, no entanto, a mais duradoura) e dá ideia que accionou o piloto-automático nos seus filmes [com uma ou outra honrosa excepção: por exemplo, o mal-amado You Will Meet a Tall Dark Stranger (Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos, 2010), em que enfrenta, finalmente, a velhice e o medo da morte].
E, no entanto, é natural que Deconstructing Harry determine um “fim da obra”: o que é que poderia vir a seguir a este filme raivoso, nervoso (o jump cut na montagem a imitar o discurso entrecortado do actor), sujo, porco (nunca se ouviram tantos palavrões num Woody Allen), vingativo, contra tudo e contra todos, contra as ex-mulheres, mais ou menos neuróticas (Olá, Mia Farrow), contra a família, contra a religião (o judaísmo), contra o próprio realizador (de todos, é o retrato mais cruel da persona Woody Allen), contra todas as críticas à sua obra, contra quem usou o episódio Soon-Yi para o denegrir, até mesmo contra o acto artístico em si (apesar da mensagem de esperança, do “final feliz”) em que o autor se refugia (quase todos os momentos mais baixos de Harry Block são mostrados através das suas personagens) e de onde desfere os seus ataques letais?
Como poucas vezes na filmografia de Woody Allen, Deconstructing Harry alia a vontade do realizador em fazer filmes sérios (ou “a sério”), à maneira de Ingmar Bergman [parte da trama é roubadíssima a Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957)] ou Federico Fellini (a puta, o amigo morto, as personagens que interpelam Harry), e o seu à-vontade com a comédia (género em que é, parece que a contra-gosto, um mestre). É um filme duro, dorido, doloroso [lembra de alguma forma All That Jazz (O Espectáculo Vai Começar, 1979) de Bob Fosse], mas tem mesmo muita graça: as piadas, as do diálogo frenético mas também as visuais, são óptimas (e, por falar em visual, uma das melhores piadas surge quando a velhota cega ouve o orgasmo de um homem e o toma como paixão por cebolas).
“Filme final”, Deconstructing Harry foi também a última vez que Woody Allen trabalhou com Carlo Di Palma, o director de fotografia que melhor o compreendeu: deu-lhe toda a liberdade, permitiu-lhe ir o mais longe possível no registo agridoce em que se especializou nas décadas de 80 e 90. É difícil imaginar um gag tão feroz (e tão visual) como aquele do actor que fica desfocado e não pode trabalhar e obriga toda a família a usar uns óculos especiais num dos filmes mais recentes do cineasta. Não se dá o devido valor a Di Palma, mas o certo é que Woody Allen nunca recuperou da perda desse colaborador. Ainda no capítulo dos colaboradores, ao rever o filme, lembrei-me do quão boa Judy Davis é quando trabalha com o realizador. A sua presença no próximo To Rome With Love (Para Roma com Amor, 2012), a estrear em Setembro, cria algumas expectativas em relação ao filme.
Deconstructing Harry passa dia 5 de Agosto (domingo), às 18:00 e às 21:30, no Espaço Nimas em Lisboa.