Os jogos olímpicos não se jogam só de quatro em quatro anos, mais ou menos longe, no nosso ou noutro fuso horário qualquer. Também não são praticados apenas por atletas profissionais de alto ou de baixo gabarito. O amor a qualquer uma das modalidades que hoje se dizem olímpicas terá nascido, na rua, com os curiosos e os desajeitados, vulgo amadores. Não é, então, por acidente que o cinema, essa arte da rua e dos am(ad)ores, sempre se mostrou ágil a documentá-lo – medalha de ouro para ele!
O que acontece quando o líder do Partido Comunista Italiano tem um acidente de carro e, na sequência deste, perde a memória? A rápida desintegração do partido? O princípio da revolução? A histeria das massas? Não: um jogo de pólo aquático. Nanni Moretti, um dos realizadores mais tempestuosamente obcecados (com a prática desportiva) na história do cinema moderno, quer ganhar. Ganhar o quê? Não, não é o partido, também não é a revolução ou a histeria das massas… acho que já perceberam: o programa ideológico joga-se aqui apenas e só numa partida de pólo aquático. À primeira vista, o projecto parece fácil de levar avante, mas (porca desgraça!) à volta da arena líquida os mais impertinentes assediadores montam o cerco: colegas de partido oportunistas, jornalistas que não “dão valor à palavra”, o Dr. Zhivago (Doutor Jivago, 1965) que polui um ecrã de televisão como se fosse um jogo de bola… Demasiada coisa (= a sociedade italiana) para que, em Palombella Rossa (1989), Moretti consiga fugir às marcações cerradas, faça um, dois, três passes acertados e ainda tenha clarividência para converter em golo o pénalti decisivo.
Luís Mendonça
Se em If… (Se…, 1968) há rugby, argolas, trampolim, esgrima e por aí fora, a verdadeira modalidade “olímpica” só pode ser o tiro. E é curioso que o massacre final, pré-Columbine, pré-Elephant, bandeira anarquista do filme de Lindsay Anderson (é 68, amigos), vem impor uma distorção interessante da lógica mens sana in corpore sano. É precisamente porque a mente dos jovens deste restrito colégio interno britânico não é sã que o corpo deve ceder, trabalhar com coisas reais (diga-se armas a sério, com balas reais; mas também mulheres reais, violência real). É sempre essa angústia que o filme procura explicar, entre o instinto verdadeiro (“paradise is for the blessed not for the sex obsessed”) e o travão da autoridade e da wisdom. Por causa dessa dualidade escolho o plano da esgrima imaginária na rua (antes houve esgrima real), um divertimento urbano roubado à nova vaga francesa. Neste, Mike Travis (o actor Malcolm McDowell, três anos depois, verá a sua “maldade” ser corrigida por Kubrick ) e o amigo, passeiam e contemplam lingerie feminina em montras, lutam, rebolam-se no chão da rua, roubam uma mota, e, no mais belo momento do filme, pedem um café a uma jovem. Mas aí, já tudo é black and white: as imagens e os cafés.
Carlos Natálio
Um jogo de pingue-pongue (ou ténis de mesa, se quiserem, sempre lhe dá um ar mais aristocrático) entre um neurologista e a namorada de um paciente seu, melhor, entre dois amigos que estão do mesmo lado da barricada de A Matter of Life and Death (Um Caso de Vida ou de Morte, 1946), os dois pela vida de Peter Carter, o vivo que era suposto estar morto (pelo que nem se pode dizer, como noutros casos, que o jogo é analogia de outras tensões). A história de A Matter conta-se depressa (e mal): Peter, piloto da RAF, atira-se, sem pára-quedas, de um avião em chamas, mas não morre, por erro do “anjo da morte”, e tem agora de prestar contas com o Céu, onde já deveria estar; um processo (judicial) complicado. Este fotograma do filme de Michael Powell e Emeric Pressburger, também conhecido como Stairway to Heaven (o que não interessa para aqui: subir escadas, seja para onde for, não é, por enquanto, modalidade olímpica), tão parado e tão fixo, não é menos fixo nem parado que o filme corrido, que fica parado e fixo, assim, por uns segundos. Não é primeira vez que acontece: quando o “anjo da morte” aparece a Peter, resolvido a levá-lo para a celestial eternidade, o tempo (dos vivos) pára e eles conversam no espaço (palavras do “anjo”, explicação suficiente). Os outros dois é que, coitados, ficam, bem literalmente, a meio de um jogo (veja-se a bola parada no ar), condenados a esperar que a conversa acabe, presos a esse instante, sem saberem quem ganha ou perde (então para que serve jogar?).
João Lameira
Antes de Eddie Murphy ser um montão de personagens, todas enchoriçadas de silicone onde o humor era propulsionado a metano, Jerry Lewis fez The Nutty Professor (As Noites Loucas de Dr. Jerryll, 1963) a sua quarta incursão na realização. Mas como o título português dá a entender, esta é a adaptação de Lewis da novela de Robert Louis Stevenson, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que havia tido já dezenas de adaptações entre as quais se salientam uma (extraordinária adaptação) de Rouben Mamoulian, Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro, 1931). Como Mamoulian, Lewis percebeu que a história era antes de mais um trabalho sobre a sexualidade reprimida e portanto em vez de transformar o protagonista num monstro, transformou-o num galante sedutor. O que vemos no plano é um Dr. Jekyll (aliás Julius Kelp), magrinho e enfezado (como só Lewis soube ser, o primeiro de todos os geeks) a tentar transformar-se num homem dotado de atributos físicos dignos do agrado feminino. A tarefa falha e a alternativa é a tal poção que fará dele Buddy Love, uma criatura dotada dos atributos do veludo. Os franceses chamaram-lhe o rei da loucura e quem sou eu para discordar.
Ricardo Vieira Lisboa