Desde 1952, e de dez em dez anos, a Sight & Sound, a reputada revista do British Film Institute, publica uma lista (a lista?) dos melhores filmes de sempre, concertando as opiniões de diversas personalidades ligadas ao cinema, entre críticos, programadores, distribuidores e académicos. A de 2012, que contou com a participação de mais de 800 dessas individualidades (a maior votação de sempre), teve como principal novidade a saída de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) de Orson Welles do lugar cimeiro, posto que mantinha desde 1962. A listagem completa pode ser consultada aqui. O João Lameira e o Luís Mendonça descortinam, cada um, um ponto positivo e um ponto negativo na lista divulgada no passado dia 1 de Agosto.
Um ponto positivo. A troca de posições entre Citizen Kane e Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock, número dois na lista de 2002. É saudável, é refrescante até, passar a ter como “melhor filme de sempre” (o título, mesmo entre aspas, é sinal da importância da lista da Sight & Sound) uma obra tão esdrúxula e wagneriana (e não só pela música de Bernard Herrmann); um filme, bem vistas as coisas, tão estranho, desequilibrado (a sequência da “perseguição” de Scottie a Madeleine, de carro, a pé, por entre as ruas, lojas, museus, e cemitérios de San Francisco demora uns bons 45 minutos) e obsessivo (o sonho, as espirais), tão longe da perfeição do filme de Welles.
Por outro lado, esta mudança fará bem a Citizen Kane, obra-prima absolutamente genial (com as qualidades e defeitos do adjectivo), no qual já se notava o peso dos cinquenta anos em que teve de segurar o título de “melhor filme de sempre”, de se defender das investidas daqueles que se divertem a derrubar pedestais, em que foi alvo de estudos seríssimos e graves. Agora, livre desse fardo, poderá ser visto, outra vez, como o filme prazeroso que também é.
Um ponto negativo. Não é exclusivo desta lista, é um problema de qualquer lista, de qualquer livro que designe 1001 a ver antes de morrer (mas, de qualquer maneira, aproveito o ensejo): a criação de um cânone muito cerrado, dos filmes que verdadeiramente valem a pena, que se recicla de uma maneira muito auto-fágica (um filme aparece na lista de 2012 porque já apareceu na lista de 1972) e, como é óbvio, exclui centenas (milhares) de outros filmes tão bons ou melhores que aqueles (às vezes, de uma maneira pouco óbvia ou lógica). Como se por se ter visto o Citizen Kane já não fosse preciso ver o F for Fake (1973), como se por se ter visto o Vertigo já não fosse preciso ver o The 39 Steps (Os 39 Degraus, 1935). Isto, só para ficar noutros filmes dos mesmos realizadores consagrados. Que dizer, por exemplo, de um cineasta como Max Ophüls, que não consegue pôr um único filme na lista?
É por isso que nos parece a nós, aqui no À pala de Walsh, tão importante ter uma rubrica como o Recuperados. Não é que vamos recuperar Ophüls, que felizmente, por enquanto, não necessita de ser recuperado, mas, lá pelo meio, para lá do entulho de listas e mais listas, deste cânone e do outro, descobriremos, por certo, uma obra-prima caída em esquecimento.
(A Sight & Sound publicou um texto de acompanhamento à lista, de Michael Atkinson, Listomania!, que, para além de comentar as entradas e saídas ao longo dos anos, de tentar encontrar explicações para a canonização de determinado tipo de filmes e não de outro, faz uma pequena (auto-)crítica à “febre das listas” de tanto cinéfilo.)
João Lameira
Um ponto positivo. A lista em geral. Adoro este exercício que a revista Sight & Sound tem lançado a críticos, académicos, distribuidores e cineastas de todo o mundo, desde o longínquo ano de 1952. Estes tops vão-nos ajudando a perceber como evoluem os gostos ao longo do tempo e ainda têm a função, que diria essencial para o cultivo da cinefilia, de divulgar junto das novas gerações os grandes títulos da história do cinema. Não vou aqui levantar a sobrancelha e dizer que este ou aquele filme é “sobrevalorizado” ou nunca deveria constar de uma lista com esta importância (afinal, está-se aqui a escolher o melhor entre os melhores). Não, não o irei fazer e por uma razão muito simples: estas listas têm revelado uma sensatez que facilmente se comprova olhando para os nomes dos realizadores que delas fazem parte, todos eles peças fundamentais para a compreensão da história do cinema.
Quem for ver estes filmes, sairá seguramente enriquecido, tal como verá reforçada a sua crença no poder do cinema. Foi o que aconteceu comigo em 2002, quando saiu a lista anterior. Tinha 16 anos e, graças a ela, descobri muita coisa e ganhei apetite para muito mais – também vi confirmada por “gente importante” paixões minhas por filmes como Citizen Kane, Vertigo e Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980). Olhei para as duas listas com enorme respeito, apesar de ter perdido mais horas a ver os tops individuais dos realizadores que dos críticos e académicos. Depois de ter passado a pente fino este enorme manancial de informação, parti para a descoberta de alguns dos maiores marcos da Sétima Arte, como 8 1/2 (Fellini Oito e Meio, 1963) ou Schichinin no samurai (Os Sete Samurais, 1954) ou até Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952), que na altura ainda não tinha visto. Também fiquei ansioso por deitar olho sobre as obras-primas de Ozu e Mizoguchi (realizador algo esquecido nestes tops), o que fiz bem mais tarde e com inestimável prazer.
Ainda como ponto positivo, reportando-me aqui à lista dos “especialistas” em cinema, tenho a realçar o destaque já dado a filmes bastante recentes, todos eles magníficos, como Fa yeung nin wa (Disponível para Amar, 2000), que está em 24.º lugar, e aquela que já é consensual e muito justamente tida como a maior obra-prima de David Lynch, Mulholland Drive (2001), que está em 28.º lugar. Parece que The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011) foi o filme contemporâneo que esteve mais próximo de integrar a lista, ficando a um ponto do 100.º posto. Fica deste modo provado que a crítica e a academia não vivem apenas no passado, nem tão-pouco só sabem alimentar com mortos, qual necrofilia cinéfila, o imagi(n)ário colectivo.
Um ponto negativo. Enquanto “amador do cinema”, não posso deixar de constatar, com alguma estupefacção, que Chaplin não só fica de fora do Top 10 como apenas merece uma primeira referência no 50.º lugar, ocupado, entre outros grandes filmes, por City Lights (Luzes na Cidade, 1931). As injustiças são inevitáveis numa selecção desta natureza, mas o lugar do realizador de filmes tão emblemáticos e fulcrais como Modern Times (Tempos Modernos, 1936) ou Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925) não devia sofrer tamanha desvalorização. Confesso que quando pela primeira vez passei os dez mais pelos olhos, a primeira ausência que me veio à cabeça foi a de Serguei Eisenstein, ainda assim, encontrei na “promoção” da magnífica e moderníssima obra-prima de Vertov, Chelovek s. kino-apparatom (O Homem da Câmara de Filmar, 1929), uma espécie de compensação moral para essa notória falha. Contudo, no caso de Chaplin, lamento, mas não há desculpas. O 50.º lugar ser o primeiro lugar para alguém com o génio intemporal de Charlot é, para mim, a mais gritante injustiça cometida por uma lista que, apesar de tudo, na sua globalidade oferece pontos sólidos de contacto com as listas anteriores, sinal não diria só de conservadorismo mas, antes de mais, de enorme respeito, amor e fidelidade à memória do grande cinema.
Não sendo bem um ponto negativo, mas mais uma constação, registo ainda a não inclusão do filme The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955), filme que há pouco tempo os Cahiers du cinéma, numa lista semelhante à da revista britânica, consideravam ser a segunda maior obra-prima na história do cinema (sendo a primeira o incontornável clássico de Welles, despromovido tanto por realizadores como por críticos e académicos nas listas que aqui tratamos). Sintoma da perda de força de uma certa crítica francesa? Sinal de que a valorização crescente que tem merecido o único filme realizado pelo actor Charles Laughton ainda não é suficiente para o “pôr a jogar neste campeonato”? Sem tomar partido, deixo ao leitor estas questões.
Luís Mendonça