The new cinema, like the new man, is nothing definitive, nothing final. It is a living thing. It is imperfect; it errs.
Jonas Mekas
(…) that failure remains one of the greatest successes in the history of the cinema.
Orson Welles sobre Intolerance (Intolerância, 1916)
A quente, diria que a tão maldita imperfeição se consubstancia, primordialmente, em duas figuras muito polemizadas na filosofia como no cinema: o erro e o ridículo. Muito polemizadas, sim, mas pouco sistematizadas ou criticamente avaliadas no contexto da análise fílmica.
Parece-me que o erro procede a uma redução na e da imagem por ser algo que sequestra o nosso olhar das imagens do filme, tal como o sol que, de súbito, desaparece na peneira que o tapa da nossa vista. Já o ridículo define-se, por norma, como um excesso na e da imagem; pegando na mesma analogia, é como um sol demasiado radiante, artificial e todo ele visível, demasiado visível (sem peneira). Assim, se o erro opera uma subtracção no valor da imagem, o ridículo incrementa-o até ao paroxismo. O microfone que não escapa ao enquadramento ou o reflexo não intencionado do operador de câmara num espelho, mesmo numa cena dramática e plasticamente forte do filme, tendem a subordinar todos os elementos da imagem ao seu extemporâneo aparecimento no quadro, pondo em abismo tudo aquilo que faz daquela cena dramática e plasticamente forte nada mais do que “just a fuckin’ movie”. “ERRO!”, gritam sobre a imagem o microfone e a sombra que não se queriam visíveis…
A relativização do erro – ou a aceitação da mentira que, apesar de tudo, o cinema é e é sempre – terá sido uma das conquistas mais importantes do cinema moderno, momento gerador de um novo tipo de espectador, adulto o suficiente para romper com os protocolos rígidos do clássico (um contrato…), adulto o suficiente para assistir, por exemplo, no olhar de frente para a câmara de Harriet Andersson em Sommaren med Monika (Mónica e o Desejo, 1953) não à sua conversão na berrante exclamação “ERRO!” mas apenas e justamente a ele: “um olhar de frente”. Esta primeira conquista (pelo espectador) de “olhares de frente” rigorosamente simétricos, para lá do erro, para lá da ilusão necessariamente contratualizada do filme, fez abrir (no cinema) todo um universo de possibilidades que até à data, é a minha crença, ainda não compreendemos por completo. (LM)
No entanto, se o público foi aprendendo a suspender a suspension of desbelief, reconhecendo a mentira do cinema, aceitando-a, até tomando o gosto a pequenos desvios ao realismo, sinal da vitória do pós-modernismo, tem mais dificuldade do que outrora em condescender com o erro. Qualquer efeito especial que se mostre como tal (ou seja, que não seja a imagem de limpeza do digital), qualquer efeito especial com mais de vinte anos (e… e…) é recebido com risos escarninhos. É ridículo, dizem os entendidos, e a sala vai abaixo com as gargalhadas. E ai daqueles que vão para além do erro, que se entregam (ou entregaram, que isso foi passando de moda) sem freios ao esdrúxulo, ao extravagante, contrariando o naturalismo vigente (que, se incorpora o pós-moderno, detesta o esquisito). Esses merecem o maior desprezo, são sentenciados à categoria do kistch ou do camp, a pena mais dura de todas. (JL)
Curiosamente esse processo de “kitchisação” de um certo cinema mais inchado tem surtido efeitos curiosos, mais que não seja pelo facto de desenvolver (mesmo no mais empedernido dos espectadores de filmes sacados) uma certa cinefilia nas papilas gustativas (ou nas íris?) em torno de objectos que não o pastelão americano de hoje em dia. O gosto por um cinema incapaz (tanto por falta de dinheiro, quer por falta de habilidade) tem surtido os mais interessantes resultados: veja-se o caso de Tarantino e o prazer que este encontra nos filmes exploitation [e blaxploitation, Django Unchained (Django Libertado, 2012) parece ser um herdeiro dessa memória] onde o erro que era coisa dos inaptos passa a ser gozo de cinéfilo [basta lembrar o caso da bobina perdida em Death Proof (À Prova de Morte, 2007)]. Aqui o erro tornou-se em exercício de estilo, demonstração de graça e equilíbrio: o filme já não é tão mau que se torna bom, é tão bom porque sabe ser tão mau. (RVL)
Essa “consciência do erro” nas mãos de Tarantino (que é mais uma homenagem do que outra coisa) ganhou um forte poder mediático. É um incrível cinéfilo que diz que o cinema é John Ford paredes meias com Sergio Corbucci. Ou é a função dos pintelhos no erudito da obra de César Monteiro. Essa miscigenação das águas já não quer apenas distinguir entre o cinema adulto (moderno) e o cinema industrial. Quer apenas abolir (ou tornar lasso) o estigma de um centro respeitável e de uma periferia porca. Quando em 1964 Susan Sontag escreveu Notes on Camp havia o propósito de construir uma dignidade e um conteúdo para uma identidade estética do gosto pelo artifício e pelo excesso [um belo exemplo citado é o de King Kong (King Kong, 1933) de Ernest Schoedsack]. Hoje as fronteiras não desapareceram mas confundem-se. O mainstream importa esse artifício e esse excesso não como um gosto especial mas como condição de veridicidade. É um falso excesso pois os códigos sobre os quais assentam não podiam ser mais rigorosos. Nesse “excesso”, o erro passa despercebido (como passam muitas imagens) e o ridículo é o de não se compreender a “profundidade” do estilo e da mensagem. Como dizia Sontag, havia várias obras que estilisticamente eram más ao ponto de nos rirmos delas mas não ao ponto de serem agradáveis. Eram as que se rodeavam de um discurso pretensioso. E são hoje os blockbusters de autor. (CN)
A ideia de blockbuster e mainstream conduz-me a outra questão ligada à problemática da (im)perfeição no cinema: o dinheiro e a capacidade de o pôr a circular. Um filme mal feito não tem de ser só obrigatoriamente um filme pejado de erros estilísticos e/ou técnicos, provocados de modo mais ou menos consciente pelo realizador tarefeiro ou auteur de serviço; pode ser simplesmente um filme que não “dá retorno”. E o que é isso de dar retorno senão um eufemismo para “não gerar lucro”? Digo eufemismo porque pressupõe uma reacção do público, como se o cinema estivesse sempre muito preocupado com o que o público pensa dos filmes (o chamado feedback). O fenómeno cult, por exemplo, surgido nos anos 80, com as primeiras VHS e as primeiras grandes “recuperações” cinéfilas, mostra como “filmes imperfeitos”, sobre os quais o público cola frases como “tão mau que é bom”, podem “dar retorno” — lembra-se de Rocky Horror Show (Festival Rocky de Terror, 1975)? Isto é, o filme errado pode ser um mais-que-perfeito filme errado.
Falo aqui de “erro” como sinónimo de “gosto”, mas o erro como sinónimo de “estilo” também já fez de um filme de estudantes “só” o título mais rentável da história do cinema. Falo de The Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch, 1999), o falso-documentário (isto é, indutor de enganos e erros no espectador) sobre assombrações e bruxedos que fez dos pontos fracos, nomeadamnete, uma duplamente desqualificada realização (não só dos realizadores mas também das personagens realizadoras), as suas maiores forças. Portanto, falo de erro, erro do gosto e do estilo como da técnica, e falo de retorno, logo, da dicotomia sucesso (hit) e falhanço (flop). Será que o falhanço tem de ser motivado pelo erro? Não é fácil de responder, se pensarmos que hoje nos saem tão facilmente adjectivos como “intocável” e “perfeito” associados a filmes que, na sua época, foram globalmente castigados pelo público ou crítica e (aviso: não escrevi aqui “logo”) falharam rotundamente nas bilheteiras… Exemplo? Fácil: Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), “só” aquele filme que reúne hoje mais consenso na dificílima nomeação do melhor filme de sempre. (LM)