Para poder falar do cinema que passa nos nossos televisores – verdadeiramente “que passa”, já que nunca permanece de corpo e alma aí, ferido que vai sendo na sua integridade estética, temática e contextual -, proponho avançar numa divisão de águas entre práticas e vícios no tocante à sua (re)corrente (des)programação.
Para aqueles que fazem do zapping um saudável desporto de pesca sem linha e sem anzol (wireless?) ao melhor que há na Sétima Arte, o que me preparo para dizer não constituirá uma grande novidade, nem mesmo soará a afirmação excessiva. Dito rápido e depressa, poucas razões tem o cinéfilo para estar satisfeito com a televisão nacional. A maior parte dos canais que “passa” filmes vive num regime de programação dessensibilizado e automático, isto é, os títulos (os mesmos títulos!) circulam e repetem-se sem nenhuma razão especial. Eles simplesmente “circulam por circular”, num sistema de compensações comerciais ou financeiras que são totalmente alheias ao telespectador, mas que nenhum canal tem sequer a dignidade de disfarçar. Não há portanto o cultivo das “boas aparências” no negócio dos filmes na TV (não confundir aqui estes filmes com os “filmes da TV”, vulgo telefilmes): o filme que nos aparece à frente é mercadoria com prazo de validade, por isso, até à expiração, levaremos com ele como aquele pai e filha no mais recente filme de Béla Tarr, isto é, comendo sem protestar batatas cozidas todos os dias…
A miséria ataca, portanto, quem come, mas não obrigatoriamente quem produz (a estes ataca, antes, o miserabilismo). Enquanto formos engolindo os mesmos filmes, os “bons rapazes” que ocupam, gerem e compõem o espectro mediático continuarão a servir-nos mais do mesmo… e sem qualquer acompanhamento como extra. Então, não era bom que houvesse ao menos uns legumezitos a acompanhar as batatas cozidas de todos os dias? Quero dizer, um prelúdio, por mais pequeno que fosse, feito por alguém que amasse o cinema, alguém que já descobriu o prazer de dar a ver, a seguir ao prazer de ver? Os filmes passam na nossa TV sem que sintamos a alma de quem a (e nos) programa – terá alma? Às vezes pergunto-me quem escolherá aquilo que vemos no pequeno ecrã e às vezes, muitas vezes, imagino uma máquina a lançar filmes para o ar como quem acciona, com cifrões no lugar dos olhos, uma daquelas ridículas slot machines de casino.
Pode parecer paradoxal, mas não é: em termos cinematográficos, diria que, na maior parte dos canais que passam filmes, o alinhamento (ou, usando um termo mais jornalístico, o agendamento) das obras é puramente acidental, mas, em termos contabilísticos, a repetição destes “acidentes cinematográficos” – a sua clara padronização – leva-nos à conclusão de que, pese embora não haja uma programação de facto, pensada e pensante, há, ao invés, um programador e um programado. De um lado, alguém vende, está a vender ou a rentabilizar, dentro de um certo “prazo de validade”, um produto e, do outro, alguém (nós) está a ingerir o produto servido, passivamente, no conforto do sofá. Assim, e arrisco avançar com esta conclusão, na nossa TV, temos programadores e programados mas não temos uma verdadeira programação, sobretudo se entendermos esta como uma dialéctica construtiva entre programador e programado.
Face a esta constatação – que penso ser relativamente pacífica, mas que ao mesmo tempo, e esse é o grande paradoxo, não incomoda muita gente – e segundo as más práticas generalizadas, proponho uma classificação muito simples (alguns dirão simplista) do grupo de canais “passadores de filmes” que domina a nossa paisagem televisiva. De um lado, vejo os canais que formam a Playlist TV; do outro lado, vejo os representantes da Sheet TV. Os primeiros incluem as Fox, os AXN, o MOV e o TCM, os segundos, essas “virgens puras lacrimejantes”, consagram a (in)coerentemente concertada, e amalgamante, política de programação dita “de serviço público”, isto é, RTP1, RTP2 e RTPMemória. Todos jogam (mas não deviam) com números, cifrões e cálculos de balancete, mas programaticamente há algo que os diferencia: se a Playlist TV passa e repassa filmes dentro de certo quadro financeiro e jogando com as preferências do seu público (como nas rádios com as suas listas de greatest hits), a Sheet TV passa e repassa filmes com uma folha (sheet, em inglês) de encargos na mão, engavetando de forma muito desajeitada e insidiosa blocos aleatórios de filmes em rubricas tais como “cinema português” ou “cinema europeu” ou “cinema americano”.
O que me choca é que consegue haver mais coerência programática na Playlist TV do que na Sheet TV. O exemplo claro disso pode ser dado através de uma rápida comparação entre a RTP2 e o canal TCM. A primeira diz-se “regular” na sua programação de cinema, apesar de passar filmes “feriado sim, feriado não” ou, às vezes, “semana sim, semana não”, sempre consoante a acessibilidade aos seus pratos fortes, as séries norte-americanas (que, por acaso, pequeno pormenor…, não constam da folha de obrigações…). A segunda passa cinema, algo repetitivamente é certo, mas passa-o simplesmente, isto é, não se serve dos filmes para “tapar buracos de programação” ou para fazer cumprir “obrigações mal quistas”.
Os filmes na RTP2 têm, ainda assim, lugar reservado nas noites de sábado, contudo, essa sessão, que é sempre dupla, protagoniza os casamentos de filmes mais delirantes: não se espante se apanhar Road to Nowhere (Road to Nowhere – Sem Destino, 2010) com Les quatre cents coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959) ou Sukkar banat (Caramel, 2007) com La reine Margot (A Rainha Margot, 1994) ou Das weisse Band (O Laço Branco, 2009) com Persépolis (Persepolis, 2007)… Quando a RTP2 não é de modo algum regular na sua desprogramação de cinema, a selecção não nos deixa menos estupefactos: por exemplo, a semana que antecipou o estúpido regresso de 5 Noites, 5 Filmes (estúpido porque não permanence, isto é, leiam isto, caros senhores directores da RTP2, NÃO SE R-E-G-U-L-A-R-I-Z-A), um filme como Forget Paris (Esquecer Paris,1995) de Billy Crystal foi passado com filmes, tão diferentes deste e entre si, como Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010), Les plages d’Àgnes (As Praias de Varda, 2008) ou Tetro (2009). O que se passa aqui é que os filmes são postos numa playlist que responde (e responde deficientemente) a determinados encargos de serviço público, mas que disfarça mal a total ausência de critérios e de tacto cinéfilo na articulação das obras escolhidas. Assim sendo, a Sheet TV funciona num total desrespeito pelo cinema, que é gerido (termo assassino) como quem organiza os produtos da mercearia no fundo mais ermo da despensa (e não tenham dúvidas que a maior parte dos filmes que a RTP2 aceita passar são despojos da mãe matrona RTP1).
Na grelha do TCM, por outro lado, os filmes, na sua maioria clássicos, estabelecem um mínimo de diálogo entre si – e, portanto, nem que em segunda mão, com o espectador. Há pouco tempo apanhei vários Minnellis seguidos (este mês deverá ser Charles Vidor o “homenageado”) ou um ciclo de cerca de um mês dedicado a musicais do período clássico, acompanhados por pequenos apontamentos históricos e entrevistas a celebridades com forte pulsão cinéfila (a que foi feita a Tarantino permanece como um fenomenal “acompanhamento de luxo”). A RTP2 detesta cinema, para ela, e eis o paradigma da Sheet TV, este não passa de uma obrigação burocrática, já o TCM, apesar do seu formato playlist, passa filmes por amor aos e para fazer amar os seus clássicos. Entre uma e outra, escolho a segunda. Entre as potencialidade de uma e as potencialidades de outra, escolho a primeira, mas para isso é preciso tornar a sheet numa programação não obrigada (de forçada), mas “muito obrigada” (de agradecida). Lembram-se das introduções de Bénard da Costa e do Filme da Minha Vida da Inês de Medeiros? Pois… é esse o espírito (a alma!) que falta e que faz toda a diferença no serviço público de televisão, aquele que há muito deixou de existir. (Não vou, por isso, verter lágrimas de crocodilo sobre mortes anunciadas… É que, está provado, ninguém consegue morrer mais do que uma vez.)
PS: esta crónica foi escrita antes de ter saído a notícia da eventual venda da RTP2 pelo governo.