The Big Parade (A Grande Parada, 1925) foi o filme que elevou King Vidor ao estatuto de grande entre os grandes, foi também uma das primeiras produções da recém criada MGM e o seu primeiro grande sucesso comercial. Tanto foi o sucesso que, como recompensa, os executivos do estúdios deram liberdade total a Vidor para fazer o que quisesse e o que surgiu foi The Crowd (A Multidão, 1928).
The Big Parade é um filme de guerra, disso não há dúvidas. Um mocinho americano alista-se e vai para França combater naquela que à data era só A Guerra Mundial, porque ainda não havia segunda. Mas é mais do que isso, é tanto um filme de guerra como um melodrama e uma comédia de enganos. É de guerra porque cumpre todos os requisitos do género (aliás, muitos desses requisitos foram introduzidos e consagrados neste filme): a recruta, as canções militares, as marchas e por aí. É igualmente melodrama uma vez que trata de um amor entre um soldado americano e uma camponesa francesa, incapazes de se comunicarem e incapazes de se reencontrarem (por causa da dita guerra que os juntou). E comédia de enganos por essa tal questão da incomunicabilidade franco-americana.
Com tantos géneros a concorrerem num filme só, podia dar-se o caso de um filme desconchavado [lembro-me, por exemplo, do caso do recente War Horse (Cavalo de Guerra, 2011) de Spielberg que vivia entre tantos desejos, queria ser tantos filmes ao mesmo tempo, que acabou por não ser nenhum bem], mas isso não acontece, em parte porque há uma divisão do filme; Vidor corta a película a meio, o alistamento, a recruta e a estadia em França são uma parte, depois há um toque de corneta, um interlúdio — It had begun — e o filme muda de tom, torna-se mais grave. Não é que não haja injecções de humor mais à frente, há-as e de encantadora graça: estão os homens num buraco, lama por todo o lado, um superior ordena-lhe que escolham entre si aquele que irá matar os inimigos que controlam uma metralhadora ali perto; todos querem ir, não querem que qualquer um dos seus amigos seja o escolhido e por isso decidem fazer um concurso (o vencedor irá na missão assassina) de … cuspo ao alvo. Fazem um alvo na terra e cada um deles cospe o tabaco de mascar que todos vão ruminando. Haverá momento de maior graça? Três homens que sabem que a sua morte espreita e mesmo assim decidem brincar, no meio da lama, a ver se conseguem evitar que os seus comparsas sejam os sacrificados?
Mas não só a divisão central permite unificação da obra, há um elemento que a meu ver se torna fundamental na compreensão de como se juntam as peças do puzzle: os sapatos (Walsh bem soube que they all died with their boots on). Existem ao longo do filme três grandes planos de sapatos (na primeira metade), e um outro no final em que o sapato se salienta pela sua inexistência. Cada um está associado a uma característica de cada um dos géneros presentes.
Primeiro. O nosso moço é um menino de uma família abastada, incapaz de trabalhar (nem na empresa do pai). Tem um irmão (muito trabalhador) e uma namoradinha (muito imbecil). Chega a notícia da guerra e ele despreocupa a mãe dizendo, já tenho guerras suficientes entre mim e o pai. No entanto quando se desloca ao centro da cidade vê-se imobilizado por uma parada onde os voluntários marcham para a recruta. Ele está inicialmente sisudo e chateado com o incómodo de ter que esperar, mas a pouco e pouco a música começa a contagiá-lo e o seu pé começa a bater ao som da música, primeiro um sapatinho (bate, bate), depois o outro, depois os dois ao mesmo tempo. E numa elipse está alistado e pronto para ir para a guerra. Através do sapato batucante ele enche-se de patriotismo e alista-se.
Segundo. Está já o batalhão em França e estão já todos acomodados num palheiro de uma família camponesa, está já feita a introdução à menina bonita da casa (cena hilariante em que o rapaz tem um barril enfiado na cabeça e só vê o que o buraquinho correspondente à torneira permite, conhecendo desta maneira a menina pela qual se irá apaixonar) e combinado o encontro nocturno. O rapaz prepara-se e (cá está) escova os sapatos antes de partir para o rendez-vous. O sapato como elemento definitivo do preparativo amoroso.
Terceiro. As tropas são chamadas e a despedida é feita num ápice, quando ela se apercebe já ele está na carrinha que os levará para a frente da batalha. Ela corre, ele salta lá de cima e abraçam-se e beijam-se. Ele promete voltar ela não consegue dizer nada. Em desespero ela agarra-se à sua perna, depois à corrente da carrinha (tentando inutilmente adiar a partida), depois é mesmo arrastada pela terra até que o deixa partir. Ele lança-lhe um colar como lembrança e depois em total desespero lança-lhe também um sapato. Que amante lança um sapato à sua adorada? Há qualquer coisa de extremado aqui; todo o melodrama tem que chegar a um ponto de ridículo para ser verdadeiro no seu género, sem que no entanto resulte no espectador uma descrença na situação extrema. Vidor joga este jogo brilhantemente e deixa-a na estrada abraçada ao sapato do rapaz.
A guerra acontece e os horrores acumulam-se, os amigos vão morrendo, ele vai matando, de ambos os lados os homens caem que nem tordos, uma guerra estúpida de carne para canhão. Regressa a casa e vai no carro com o pai que o tenta animar. Todos estão à sua espera, mas ninguém espera (nem nós) o que está para acontecer, quando entra em casa, ele entra sem perna, com um couto em vez de canela. É medonho. É-o, mas mal se senta com a mãe e começa a falar da camponesa gaulesa, a sua cara enche-se de alegria. Ele volta em busca dela, mesmo já sem pé, e portanto, mesmo já sem sapato. Ele volta coxeando para os braços do seu amor. Ferido e feliz.
The Big Parade será exibido no dia 1 de Setembro, Sábado, às 21h30, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, assinalando a abertura da nova temporada. Com acompanhamento ao piano de Gabriel Thibaudeau.