Numa cena de Me and You and Everyone We Know (Eu, Tu e Todos os que Conhecemos, 2005) o irmão mais velho, de uns 15 anos, mostrava ao mais novo um padrão de vírgulas e pontos feitos com o computador. “São pessoas vistas a partir do céu”, diz-lhe, “e este pontinho e esta vírgula somos nós, o resto que se vê são todos os que conhecemos”.
Este era uma espécie de diagrama do filme de estreia de Miranda July, que se espraiava por “esses todos”, que eram muitos — pessoas e situações do subúrbio americano: um pai divorciado que se auto-imolava, um goldfish no tejadilho de um carro à espera da morte, uma rua a simbolizar toda uma vida, etc., etc. — todos pertencentes a um “universo docinho” em expansão, próprio de uma realizadora de 30 anos a quem tudo lhe aparece ainda à frente, em que tudo é possível.
Apesar dos prémios que o filme conquistou (Caméra D’Or em Cannes e o prémio do júri em Sundance) havia a nítida percepção de alguns problemas de falta de coesão narrativa, um excesso inconclusivo de epifanias. Ora, The Future (O Futuro, 2011) parece querer corrigir essa voracidade, centrando as atenções num casal de 35 anos em crise de meia idade (ou antes, “in the middle of the beggining”, como refere uma personagem guru mais velho): ela, Sophie (Miranda July), professora de dança para crianças, ele, Jason (Hamish Linklater), technical adviser a partir de casa, frente a frente no sofá do seu apartamento a encarnar essa ansiedade geracional, burguesa, dos Macs e dos cafés, da consciência do tempo que se vai escapando em direcção ao vazio. Se desta vez existe uma focalização nesta dupla, há uma outra porta que se abre: o misticismo intelectual que o primeiro filme revelava tem aqui um correspondente no realismo mágico. Por isso há um gato que fala (é o narrador, com planos das suas patas e a voz distorcida de Miranda) à espera de ser recolhido pelo casal e há também uma lua falante e ainda a habilidade de Jason parar o tempo.
Como já foi dito algures, estas não são propriamente características que ajudem a amansar os haters de July que são quase tantos como os seus fãs. É que no seu já volumoso currículo transdisciplinar vai passando sobretudo a ideia do que July representa: a miúda burguesa hipster que vai fazendo das falsas inseguranças forças e vai gerindo e citando para proveito próprio o hype de gente como David Foster Wallace na literatura ou, claro, Wes Anderson e Noah Baumbach no cinema. Em inglês existe uma palavra que descreve o tom cool, indie-sun dos seus filmes e da sua arte: twee. Twee, sem ter tradução directa em português, é qualquer coisa que é doentiamente fofinha ou doce (Ricardo Araújo Pereira num dos seus sketches aproximava-se da ideia com o seu “elevado grau de fofice”).
Mas e então The Future é apenas isso, uma elevação irritante do superficial, um filme que se quer vistoso a cada ideia, aguardando verdadeira consumação? Ora, precisamente, não. E é isso que baralha mais as contas. É que este é um jogo sempre jogado na relação entre o superficialidade e a profundidade. E assim, por cada vez que parece estarmos ante um processo visual de inchamento do ego, eis que surge, a procura honesta de uma hipótese (filtrada pelo olhar buster-keateano, contido, luminoso — luminoso porque precisamente contém essa capacidade de se apagar, desiludido — de Miranda July). Aliás, era já essa honestidade em Me and You que deslocava a ironia depressiva urbana, brique-a-braque do universo indie americano, para uma visão digna de descoberta pessoal, fora de uma formatação, “género” da causa.
Dessa visão fica-nos a agressividade livre na forma de indagar a descoberta da sexualidade. No seu filme de estreia não era simples ter como bizarria um concurso de broches entre miúdas de 18 anos, ou uma conversa semi-consciente envolvendo coprofilia entre uma criança de seis anos e uma negociante de arte (a célebre expressão “Let’s poop back and forth. Forever.”). Então agora, em The Future, a sexualidade (o affair de Miranda com um homem mais velho, o caminho da diferença entre o pet e o wild) fala sobretudo desse desespero interior do sentir mais do que do corpo, que visto de fora parece ser uma invenção à medida de uma menina mimada.
E fica-nos ainda essa performatividade, como na dança na t-shirt amarela que já não busca a simbologia de uma solução trilhada pelo social. Essas hipóteses de futuro alternativo surgem organizadas no filme: Jason quer sentir qualquer coisa a vender árvores e Sophie realizar algo com um vídeo de uma dança por dia para o YouTube. Mas talvez seja no rasgo da performatividade (que, admitimos, será demais para muito boa gente) que se ensaie o verdadeiro bálsamo para esse problema/abstração brutal que é a passagem do tempo numa sociedade já pressionada no tempo.
Seja como for este futuro de Miranda July, que é muito uma ocupação menos consciente do presente, quer se concorde quer não, é o dos little steps e das meias a estender. E ele está aí, também ele “estendido”, para quem o quiser adorar ou odiar. Conterá ele uma boa dose de perversidade? Talvez seja verdade, não o negamos. Mas é também uma muito válida hipótese de trabalho e criação.