A importância deste pequeno filme, pequeno em duração e orçamento, na história do cinema norte-americano permanece, a meu ver, por apurar. Não que lhe tenha sido dada pouca atenção no ano de estreia – foi premiado em Veneza e esteve nomeado para dois Óscares -, mas com o passar do tempo este título foi perdendo visibilidade, mais ainda que os nomes da equipa heterogénea (Meyers, Levitt, Loeb e Agee) que o tornou possível.
Tornar possível uma impossibilidade ou, se preferirem, levar para a frente um filme marginal à nomenklatura dos estúdios, sem actores profissionais ou uma história agradável ao grande público. A divisa que fará de The Quiet One (1949) o grito do Ipiranga na história do cinema independente norte-americano passa exactamente por aí: primeiro, romper com a indústria e seus ditames “canonizantes”; segundo, ligar ou religar a ponta, glamorosamente destruída pelas majors, entre a realidade projectada no ecrã e esse projecto sempre-incompleto chamado realidade. Entre a projecção e o projecto, entre a ficção e o documentário, o silencioso rapaz negro do título diz “eu” – di-lo dez anos antes de Moi un noir (1958) de Jean Rouch. É nesta afirmação de uma existência “na primeira pessoa” que reside a primeira grande força de The Quiet One, filme quase anémico em matéria de recursos técnicos e financeiros.
James Agee, responsável pela escrita dos diálogos e comentário, bem como Helen Levitt e Janice Loeb, argumentistas e montadoras de serviço, já haviam trabalhado juntos em In the Street (1948-51), curta-metragem que parecia dar vida às fotos de rua de Levitt, especialmente, aquelas que documentavam a “tomada de controlo” de Nova Iorque pelas crianças mais as suas anárquicas brincadeiras de rua. Para Jonas Mekas, este filme de 16 minutos abre portas à formação do cinema independente norte-americano – eis, portanto, o momento da sua infância. Sem dúvida que, graças ele, os três recém convertidos cineastas, duas mulheres e um homem respectivamente ligados à fotografia e à escrita, provaram ser possível fazer aquilo que poucos ousaram concretizar em décadas: pegar numa câmara, sair à rua e gravar tudo o que esta tem para oferecer, por exemplo, a beleza do seu movimento caótico, os rostos anónimos de quem passa e, sintetizaria Baudelaire, a eterna beleza do transitório.
Desta equipa de destemidos “não-alinhados”, o nome que sobressai aos olhos do cinéfilo mais atento é naturalmente o de James Agee, figura incontornável na história da crítica de cinema mundial; para muitos, o mais influente crítico norte-americano da sua geração. Agee escreveu centenas de críticas semanais para diversas publicações, tais como The Nation e Time. À luz do trabalho que viria a desenvolver como argumentista, nomeadamente em colaboração com o seu ídolo John Huston [em The African Queen (A Rainha Africana, 1951)] e depois, no ano da sua morte precoce, com Charles Laughton [em The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955)], penso que será mais do que correcto dizer-se que Agee fez da crítica um pouco aquilo que fizeram anos mais tarde os “turcos” dos Cahiers amarelos: um tubo de ensaio para um cinema “por vir”. Neste particular, o facto de Jean-Luc Godard ter dedicado um dos episódios de Histoire(s) du cinéma (La monnaie de l’absolu, 1998) à memória de James Agee fecha, quanto a mim bastante bem, todo este belo círculo de referências.
Com efeito, se encontra em The Quiet One os condimentos que fizeram escola na Itália do pós-guerra, certamente não estranhará o facto de Agee ter sido um dos críticos norte-americanos do seu tempo que mais alto se ergueram na defesa do cinema de De Sica e Rossellini. Também não estranhará se lhe disser que antes de se ter tornado num reputado crítico de cinema, Agee já se havia notabilizado como escritor, graças ao sucesso que obteve com a publicação de Let Us Now Praise Famous Men (1941), registo pouco ou nada novelesco, tão rigorosamente descritivo como uma foto pode ser (e por alguma razão se faz acompanhar das antológicas fotografias de Walker Evans), de cada pormenor do trabalho e dia-a-dia de três famílias camponesas do interior profundo da América.
Agee parece ser a alma deste filme, mais até que In the Street, curta tematica e formalmente mais próxima do trabalho de Levitt enquanto street photographer. O seu empenho crítico por um cinema mais adulto e socialmente engajado era proporcional ao seu desprezo crescente pela produção corrente da grande indústria e a sua tendência, pouco abonatória ao espectador do pós-guerra, ele que estava mais do que nunca mergulhado na “realidade do seu tempo”, para espectaculizar e moralizar as suas narrativas de conto de fadas. À falta de razões para estar contente com o mainstream, Agee ia reciclando a sua crença no cinema através, primeiro, de uma recuperação, em contra-corrente, dos grandes autores do cinema mudo (exemplo do então caído no esquecimento D.W. Griffith, dos reis do burlesco americano e dos soviéticos Dovzhenko e Eisenstein) e, segundo, procurando potenciar os feitos alcançados no outro lado do Atlântico tal como ali mesmo, no seu país (a boa publicidade que fez aos filmes de Maya Deren são disso exemplo).
Não tenho dúvidas que The Quiet One transforma em celulóide muitas das palavras que Agee passou para papel enquanto crítico de cinema e humanista. Na sua narrativa quase invisível, o protagonista chama-se Donald, um rapaz negro que procura aprender a lidar com o seu passado doloroso numa casa de correcção em Nova Iorque. O filme é narrado, em off, pelo psiquiatra do reformatório, mas este “ele”, como já deixei implícito, é meramente circunstancial. É que Donald, nome do protagonista e (está visto) nome da personagem, isto é, nome da PESSOA, não fala (o título não engana), não sabe ler nem escrever. O “eu” é, por isso, uma impossibilidade (da) narrativa, desde os primeiros minutos de The Quiet One. Daí a necessidade das palavras escritas por James Agee serem ditas pelo psiquiatra como quem observa clínica e friamente do lado de fora uma vida dilacerada pela dor, a rejeição e a mais devastadora solidão.
A conquista do “eu” começa ameaçada pelo abismo que se abre à frente de Donald quando no quadro negro este vislumbra uma palavra que suscitará aos olhos de alguém privilegiado, como… você, o “caro espectador” (dispositivo típico na escrita em-permanente-litigância-com-o-leitor de Agee), a mais pura e inocente das evocações: baby. Ora, bebé… bebé igual a infância, igual a infância nua (como no filme de Pialat), a infância na ausência do pai (como na primeira e ainda mais amada longa-metragem de Truffaut), mas na presença distante da mãe (que o rejeita) e brutalmente fustigada pelo cinto da avó abusadora (como as velhas más dos filmes de infância de Bill Douglas). Tudo isto comprimido naquele espaço pequeno no quadro abissal. Podia estar escrito a giz apenas I, mas não: a palavra que contamina o filme, que o faz girar num vórtice, até ser completamente sugado pelo buraco negro da memória massacrada, é só e apenas b-a-b-y. O flashback gera-se mentalmente, como que seguindo o movimento final da água que rodopia no ralo da banheira. O filme regressará à “tona”, isto é, ao presente, mas o fulcro desta experiência (a origem do trauma) está lá atrás. É lá que The Quiet One nos punge a alma.
Começa com a foto na praia – que esconde uma pequena narrativa mais à frente “desvendada” – onde mãe, avó e ele próprio, Donald, aparecem em pose descontraída (logo, quase “sem pose”), como se fossem a verdadeira família que não são. O que deforma a imagem é o rosto “cortado” do pai, sinal inequívoco de uma primeira e insanável orfandade – uma de muitas, como veremos… O filme principia com essa “imagem da imagem” e culmina com os planos de um Donald perdido no espaço, qual O Homem da Multidão de Poe, à procura de um “sítio para onde ir”, como todas as pessoas normais fazem (em off, o narrador perambula com palavras que o menino nos comunica, uns passos à frente, com o seu andar perdido). Praticamente ao mesmo tempo, Rossellini dava vida à obra-prima Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948), irmão gémeo deste filme de Sidney Meyers, realizador que doze anos mais tarde largaria os neo-realistas e actualizaria na sociedade norte-americana o Cine-Olho vertoviano, com o seu The Savage Eye (1960). Não nos precipitemos: aqui não é o eye que é selvagem, mas sim o tal I muito lacaniano de Donald, o “Eu, negro” que se vê ao espelho e que procura um lugar, um “lar doce lar” ou apenas um fim para a sua caminhada solitária: aprender a aguentar a palavra h-o-m-e escrita a giz no grande quadro negro. Pelo menos.
(Este filme está disponível no mercado DVD norte-americano, numa cópia tão ou mais miserável quanto aquela acessível gratuitamente no YouTube.)