Nos últimos três dias do festival a coisa amansou, reduziram-se o número de sessões, repetiram-se vários dos filmes já apresentados no fim-de-semana. Assim, a única coisa que nos salvou de um marasmo total foram os programas de curtas.
O corpo.
Para começar, atiremo-nos para as chamas de O Que Arde Cura (2012) de João Rui Guerra da Mata, filme que já havia passado pela competição internacional de curtas do Indie Lisboa e por Locarno. Não tendo eu podido vê-lo em tais eventos fiquei-me pela sessão que os programadores do Queer organizaram sobre o queer cinema em Portugal. O bloco de curtas juntou dois vídeos de José Gonçalves, Julian (2011) de António da Silva (já lá vou) e a pièce de résistance: sessão dupla de Parabéns! (1998) de João Pedro Rodrigues com o dito filme de Guerra da Mata. Mas lancemo-nos às chamas. O Que Arde Cura é a primeira obra que Guerra da Mata realiza a solo. Disse-nos que queria, antes de mais, fazer um filme num estúdio, num só quarto, com um só actor; tudo devia estar concentrado dentro de um espaço (uma prisão?). Visto o filme percebo que além disso, há nele uma sede (pós-moderna?) de ‘ecranização’, isto é, tudo é um ecrã em potência. As janelas são um ecrã (literalmente uma retro-projecção), as paredes do quarto aproximam-se e afastam-se e a certa altura transformam-se nas imagens da televisão, deixa de haver espaço: só um actor e as imagens do fogo. Mas o próprio corpo é ecrã e a cama (os lençóis) também não escapa, todo o espaço do quarto é imagem de fora, acentuando o enclausuramento do homem (que só comunica com o exterior por um telefone). Mas que homem? João Pedro Rodrigues é o protagonista do O Que Arde Cura (como já era Guerra da Mata o protagonista de Parabéns!, ambos arquitectos, ambos de ressaca, ambos no seu dia de aniversário; mas as aproximações entre os primeiros filmes de ambos os realizadores não se ficam por aqui…) e é essa a questão. O corpo de João Pedro Rodrigues é chave para perceber o filme, há um plano que consagra esta visão: Rodrigues conversa ao telefone com o seu ex-amante e deixa de haver quarto (só negro), ele gira em torno de si próprio e a câmara em torno do seu corpo, só há um corpo de um homem ao telefone, completamente só, em contacto com o outro (que nunca ouvimos nem vemos) e depois, de repente chamas, o incêndio do Chiado entra-lhe no corpo, ele arde de tristeza e abandono, e depois ardem as memórias. Nada disto faria sentido com outro corpo, com outro actor que não o parceiro de Guerra da Mata. Há como que uma purga emocional, uma desparasitação da relação (há dias no MOTELx falava-se no caso do Argento que fazia sofrer a sua mulher, e agora a sua filha, nos seus filmes e como isso podia ser terapêutico).
Quanto a António da Silva tudo é muito menos simbólico, aliás, o cinema de António da Silva é muito in your face (literalmente facial), há pilas e rabos e tudo muito explícito. Mas é isso que interessa no seu cinema, como este vive entre a fronteira da arte e da pornografia. Julian é um filme diferente (dos outros que lhe temos visto), há ali uma vertente confessional: são as memórias de uma viagem de férias a Portugal dele mesmo com Julian. Filmado em película (super8?) tão granulosa e sensível à luz que percebemos que nada daquilo pode sobreviver fora da memória, não há verdadeiramente Julian por aí no mundo. Não pode existir Julian fora dessa viagem mágica a Portugal num verão quente, entre o Gerês e o Algarve, entre o mar e a terra. E por isso de novo o corpo do amante filmado ganha dimensão quase religiosa. Mas como disse, Julian é de facto um filme diferente. Diferente quer de Mates (2010) que vimos no Queer Lisboa 15, quer de Pix (2012) e Bankers (2012), ambos em estreia mundial neste festival. Pix é a compilação de imagens de homens que se anunciam em aplicações do iPhone com imagens de si, com ou sem roupa. O que António da Silva faz é encaixar estas imagens (através da sobreposição ou através da montagem) num exercício de construção do homem perfeito, o nariz de um, os braços de outro, o tronco daquele e o cabelo deste. De novo o corpo, mas aqui é o corpo de um qualquer, é o corpo pelo corpo. Assim é também Bankers, uma espécie de apanhados de casa de banho filmados com câmaras ocultas. Homens de farpela completa encontram-se em casa de banho e tocam-se, masturbam-se, chupam-se e vêm-se. All bankers are wankers. Se há algum sub-texto nesta curta é esse mesmo, o da volatilidade dos homens que nos tratam das finanças. Mas aqui só vemos mãos, pés, pilas e pouco mais, não há sequer pessoas, repetindo-me, o corpo pelo corpo.
Continuando ainda nesta senda dos corpos noto 2P2R (2011) de Filipe Afonso, onde um casal gay se envolve à luz de um computador portátil e a pouco e pouco o sexo vai-se enchendo de sons de routers e a imagem vai ganhando interferências digitais. A ideia é óbvia, como pode sobreviver o toque num mundo digital? Mas é tudo demasiado fácil e demasiado aleatório (2P2R é um acrónimo para duas prostitutas e dois rapazes – mas as prostitutas fazem figura de adereço – a tentar jogar com o R2D2).
O espaço.
Fora com corpo, joguemo-nos ao espaço. The Man That Got Away (2011) é um exercício sobre o espaço, o realizador Trevor Anderson conta-nos a história de um seu tio-avô. Conta-nos a sua história através de um musical, 6 canções originais que retratam a vida do senhor desde criança à prisão, passando pelo manicómio e marinha. A homenagem ao género é óbvia e torna-se ainda mais flagrante quando temos uma Judy Garland como colega de quarto na casa dos maluquinhos. Tudo isto é encenado no acesso de um silo de automóveis (daqueles em espiral). Onde cada volta do solenóide corresponde a um período da vida do homem. Ou seja o espaço como tempo, onde um flashback corresponde a um olhar para o piso de cima. Mas se o musical é alegria, aqui a cada volta descemos um piso e quantas voltas são? Nove, como as voltas do inferno de Dante.
Também sobre o espaço, e a encenação neste, temos Längs Vägen (Along the Road, 2011), um filme de 7 minutos num único plano sequência. São dois homens, dois camionistas que se encontram na borda da estrada. Tudo é secreto, têm medo das pessoas que passam; são os camiões que lhes dão a segurança, e a câmara roda em torno dessas bisarmas rolantes e eles enrolam-se sobre a sua protecção. Também sobre o espaço temos Assunto de Família (2011) de Caru Alves de Sousa, em que o mesmo local da casa onde a mãe fuma às escondidas do pai, é o sítio onde o filho beija o amigo do irmão. Uma marquise viciosa portanto. Claro que sentimos uma certa inconsequência no projecto, como se fosse um pedaço de um filme maior.
2F2B – duas ficções e dois documentários.
Ao longo destes últimos três dias só vi dois títulos da competição de longas de ficção. Em Mosquita y Mari (2011), no final da sessão, quando os créditos já correm, surge, por entre eles, a seguinte dedicatória: para o meu amor, para a minha família e para a minha comunidade. O filme de Aurora Guerrero é isso mesmo, uma resposta a essa check list: duas meninas do secundário descobrem os sentimentos que podem existir entre duas pessoas que se gostam (amor), fazem isto tudo sobre o olhar de uns pais e umas mães desconfiados (família) situado num bairro suburbano de Los Angels onde vivem maioritariamente latino-americanos (comunidade). Guerra da Mata (que é júri nesta secção) referiu que lhe parecia que os filmes queer estavam a ficar demasiado fofinhos; aposto que pensava neste (mas pelo que já vi da secção podia estar a falar de outros). Um filme tão educado, tão bem intencionado não pode ser verdadeiramente mau, mas a verdade é que não há nada de bom a dizer sobre ele – completamente anódino; I Want Your Love (2011) de Travis Mathews. Para quem tem seguido os meus escritos reconhecerá este nome de In Their Room: Berlin (2011). Tendo eu gostado tanto deste último as expectativas para o primeiro eram altas (demasiado altas), mas o que acontece é que I Want Your Love é dos filmes mais chatos da competição. Quando In Their Room era um filme sobre o sexo e a forma como este era veículo para a felicidade, a incursão pela ficção de Travis Mathews é uma acumulação de conversas engraçadinhas sobre relações; um espécie de Assim, Assim (2012) mas gay e com mais sexo (Mathews continua a saber filmar o sexo como ninguém).
Na competição de longas documentais vi outros dois filmes Olhe Pra Mim de Novo (2011) e Habana Muda (2011). O primeiro sobre um transexual de nome Syllvio Lúcio (sim, com y e dois l’s, porque é mais bonito) e o segundo sobre um estranho triângulo amoroso entre um mexicano, um cubano e a sua mulher. O segundo é um filme que se agarra (violentamente) à bizarra história de um casal cubano (com filhos) ambos mudos que encontram num senhor mexicano a porta para uma vida mais folgada. O senhor mexicano é homossexual e por isso a moeda de troca é o cabeça de casal. Talvez se queira dizer que o regime cubano perverte o amor, onde tudo é transacção, mas na verdade pouco se nota. Quanto ao primeiro a coisa é mais desenvolta. Syllvio nasceu mulher, hoje está prestes a concretizar a sua operação que definitivamente acabará com a máscara que ele mesmo admite sentir. Entre o ir e o vir da faca temos um road movie, uma viagem pelo sertão brasileiro que visita um homem que descobriu aos 33 anos que não era filho de sua mãe, uma família toda sofredora do síndroma de Berardineli ou vários elementos da comunidade LGBT. O que os realizadores Kiko Goifman e Claudia Priscilla perceberam foi que o que interessa num filme de estrada é a viagem e não a chegada, isto é, o que lhes interessa é o caminho para a concretização do sonho daquele homem mais que a concretização do mesmo. Daí que a imagem de uma estrada desértica com Syllvio seja recorrente, a travessia do semi-árido. Noto de passagem que Olhe Pra Mim de Novo é um filme divertidíssimo em parte porque Syllvio é um homem totalmente solto, falador e aberto na sua sexualidade.
Nota final.
Deixo para o fim, mas não para último, duas curtas, as melhores. La Santa (2012) de Mauricio López. Há aqui uma imagem tão forte que nenhuma longa (até agora) conseguiu equiparar em força: uma menina passeia pela sua aldeia olha os meninos jogarem à bola e estes convidam-na para jogar com eles (até agora tudo bem), intervalo, todos os meninos estão de costas para a câmara e fazem o desejado xixi, o estranho é que junto com eles esse mesma menina acompanha o ritual na micção. Ver uma menina de saia cor-de-rosa a fazer xixi de pé é avassalador. Mas López não se fica por aqui, a menina é vestida de santa virgem pela pessoas da terra com vista a curá-la. Enfim, faz-me impressão como consegue um filme de apenas 15 minutos ter ideias e concretização tão extremas. Mas a melhor curta até agora é Ce n’est pas un film de cow-boys (It’s Not a Cowboy Movie, 2012) de Benjamin Parent. Só podemos perceber o impacto de um filme como Brokeback Mountain (2005) quando entendemos que este foi um filme que transvasou (e muito) a comunidade gay e chegou (de facto) ao público. Quer seja pelas piadas que se fizeram, quer seja porque muitos milhares de pessoas viram pela primeira vez no cinema uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo. É sobre isto que Ce n’est pas un film de cow-boys trata, sobre como dois rapazes e duas raparigas conversam na casa de banho (no intervalo das aulas) sobre o filme que passou no dia anterior na televisão. Tudo se passa nesse ambiente azulejado e a encenação faz lembrar o trabalho de actores de Entre les Murs (A Turma, 2008), mas se nesse filme havia um vórtice em torno das ‘questões’ – a imigração, os choque de gerações, em suma a escola pública – neste o que interessa são as conversas parvinhas dos adolescentes, que escondem uma sensibilidade tocante.