Eu pensava que não percebia patavina de italiano mas consegui entender (ou acho que entendi) boa parte do que Dario Argento disse ontem na Master class que deu na Sala Manoel de Oliveira no Cinema São Jorge, a propósito da homenagem que o MOTELx lhe fez este ano. Ajudou que Argento seja de parcas palavras. Já o português macarrónico da tradutora — e a sensação de que não passava todas as palavras do realizador italiano para a nossa língua — obrigou a que esforçasse o ouvido.
Ao contrário do mais loquaz (e amigo) George Romero que veio ao festival há dois anos, Dario Argento reduz o seu discurso ao essencial: as suas obsessões (palavra que repete amiúde) — os sonhos, a música, a pintura, o medo, a infância, a morte, o cinema. Puxado por Stefano Savio e João Monteiro e pelos excertos de alguns dos seus filmes mais emblemáticos, Argento lá se foi aventurando para lá dos monossílabos mas nunca abandonando o tom pausado. Dá para perceber (o próprio o admite) que, apesar de ter sido crítico e argumentista, prefere comunicar com os outros através de imagens.
Quase apetece colocar aqui só excertos de filmes e deixar que falem por si, seriam talvez mais eloquentes do que o italiano. No entanto, entre o o original que não domino e a tradução de que desconfio, retive algumas frases e ideias do realizador que ajudam a definir o seu cinema:
“O Cinema é um sonho” – As tramas seguem essa (i)lógica, são confusas, saltando de um ponto para o outro sem grande preocupação com a coerência; importa mais a imaginação do que a razão. Os filmes devem ser interpretados como os sonhos (“talvez por um psicanalista”, diz Argento).
“Não consigo pensar num filme sem pensar na música” – Já na altura em que escreve o argumento, ocorrem a Argento apontamentos musicais. A música vem sempre antes do filme. Nas filmagens de Suspiria (1977), por exemplo, a banda-sonora dos Goblin serviu para impor o ritmo e envolver os actores na fantasmagoria bruxuleante. Resulta também com o espectador, a quem deve dar a sensação do que está a acontecer. Nunca será um mero acompanhamento para as imagens.
“Na infância, as coisas são mais belas. E mais feias” – Nos seus filmes, Argento revisita os medos irracionais da infância, evoca-os. Lembra-se (lembra-nos) do quarto escuro e do tempo em que a realidade e a cultura (a sociedade?) não comandavam para nos assustar melhor. (Nota minha: a infância e a memória são outros sonhos.)
“Um quadro conta uma história completa, não é só uma imagem fixa” (reparo: foi o que eu percebi, apesar da tradutora ter dito exactamente o contrário) – Se se pode falar da influência da pintura, ao nível dos enquadramentos e das cores, no cinema de Argento, o próprio realizador fez questão de demonstrá-la sem equívocos no seu filme La sindrome di Stendhal (Viagem ao Inferno, 1996), em que a própria filha, Asia, imerge em quadros vivos.
“Esse último e sublime prazer que é morrer” – Questionado sobre a relação entre a morte e o sexo — a morte como punição do desejo, o sexo como transgressão —, atira com esta visão sensual do último suspiro: a morte como o supremo orgasmo.
“O verdadeiro artista conta a mesma história toda a vida”/”Continuo a filmar por necessidade de contar aos outros os meus sonhos e obsessões” – A dada altura, surgiram as perguntas do público, que suscitaram estas frases lapidares. Nelas, Argento descobre-se: a verdadeira história é das obsessões e dos sonhos e ele não consegue parar de contá-la.
“O espectador é obrigado a ver a morte sem poder participar” – a frase, desta feita, é de João Monteiro, a propósito da cena da galeria de L’ucello dalle piume di cristallo (O Pássaro com Plumas de Cristal, 1970), por sinal o seu primeiro filme, mas poderia ser sobre todo o cinema de Argento. A grande mestria do realizador revela-se no olhar com que prende o espectador à (imagem da; à própria) morte: impossibilitado de impedir o crime e obrigado a assistir ao mesmo.