Der Leone Have Sept Cabeças (1970). O título do primeiro filme que Glauber Rocha rodou no exílio é todo um programa só por si: a “aliança” faz-se à superfície, não no significado das palavras, mas na sua significância neologística. Alemão, italiano, inglês (mal conjugado) e português, as línguas responsáiveis pelo colonialismo político, económico e cultural que Glauber Rocha tomou como alimento para a sua luta revolucionária, tão espiritual quanto efectiva – veja-se como nos seus filmes não há pejo de se partir para a guerra com vista a restaurar uma certa Ordem.
O título poliglota esconde a história da opressão branca sobre o mundo que se diz “descoberto” (Camões até é declamado, mas sem glória…), que se diz sub-civilizacional ou, simplesmente, se resume a duas palavras: Terceiro Mundo. É nas paisagens do Congo francês que Rocha procura estender as ideias-força do seu programa estético, começando desde logo por fazer desse país dilacerado por conflitos território mítico onde se forja o discurso não da Ordem mas antes do Progresso. O povo negro queria viver mas apenas sobrevive nessa terra que é sua por direito, mas que está sob administração de um americano, um alemão e um português, os três fiéis seguidores de Marlene, a semi-deusa semi-ninfa que é apelidada a certa altura de “besta dourada da violência”.
Como acontece nos outros filmes de Glauber Rocha, temos aqui um cenário muito propício a uma revolução popular, pelo discurso (e pelas balas) das armas. Para que ela aconteça, um elemento ou dois ou três, todos eles messias das suas Causas, são lançados para o centro da batalha. Não falamos mais do candidato Vieira de Terra em Transe ou dos “cangaceiros” de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), mas de dois “santos guerreiros”, um africano e outro latino-americano, Zumbi e Pablo, prefigurações “armadas” dos cristos de A Idade da Terra (1980), que dão nova forma ao messianismo revolucionário caro ao imagi(n)ário político-ideológico de Rocha. Também não falamos aqui de um Paulo Martins ou de um António das Mortes, mas do padre jesuíta interpretado por Jean-Pierre Léaud. Esta personagem materializa o espírito dialéctico, que lança o caos sobre o filme, sabotando, enfim, qualquer possibilidade de um discurso “a uma só voz” (dos bons contra os maus) que o espectador muito didacticamente poderá querer assacar desta como de qualquer outra experiência fílmica – e que o “imperalismo cultural” imposto por Hollywood fixa como a única receita para a boa moral(ização) dos nossos filhos. Glauber Rocha tem particular carinho por todos aqueles que derivam no mar das suas causas, oscilando entre posições à partida inconciliáveis.
Mercenários como António das Mortes ou “vendidos” à muito difusa e desorientadora Palavra de Deus como é o padre Léaud, por não estarem verdadeiramente em lado nenhum nesta Revolução, por mostrarem indecisão no seu percurso pendular, entre os que são da terra e os que sobre ela administram um império, são as personagens mais intrinsecamente humanas nas narrativas de Glauber Rocha. Há uma fragilidade ou indeterminação (mais ou menos histérica) nelas que as torna, mais imediatamente, o espelho do realizador nas suas histórias eivadas de alegorias ou produzidas numa economia brechtiana de símbolos históricos e políticos.
O eu convulso é o eu de Rocha, isso parece-me evidente, sobretudo porque também é o eu que, por não ter repouso (ou uma Verdade apenas), mais directamente labora na dialectização dos diferentes discursos na história, sejam eles revolucionários, reaccionários, religiosos ou profanantes. É também esse eu o primeiro homem, em Der Leone Have Sept Cabeças, a se juntar aos “nativos”, misturando-se com eles sem ter, contudo, grandes aspirações ao seu controle. Ele não reage; ele age “por si”, pelas suas convicções “do momento”. Léaud prende Pablo, mas depois condena e crucifica Marlene, age no início como o António das Mortes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, perseguindo o “cangaceiro”/”rebelde”, e age no fim como o António das Mortes de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), pondo fim à raça dos invasores e aos seus dogmas.
Este culto pela inconstância, pela “desrazão”, como dizia o próprio, é delegado nessa personagem alter-egótica do realizador na história, mas também é de modo claro plasmado na forma dessa narrativa. Os filmes de Rocha alternam momentos formalmente poderosos, que ambicionam uma espécie de estado zen do deleite plástico, com gestos imprevistos de realização que lembram Jean Rouch (nome que nem sempre é adicionado, na dose certa, à “feijoada de referências” rochariana) e a sua proposta estética por um cine-transe. É aliás na captação de imagens entre a multidão de nativos, que cantam e dançam as suas músicas tradicionais e que assim dão corpo, enfim, ao seu passado mítico, que a sua câmara se entrega, inteira, à perdição, isto é, perde-se literalmente no espaço e menos literalmente nas formas.
A imagem babélica da multidão (verdadeira “pirâmide humana”) que se forma enquanto os populares se atiram aos corpos dos opressores, o português e o norte-americano, é um exemplo de um acidente magnífico que se produz nas caóticas movimentações da câmara pelo espaço, entre as massas humanas. Aqui a realização parece entrar num transe, ou melhor, de se “pôr em trânsito” entre a História e os corpos, qualquer coisa próxima da experiência-catarse de Les maîtres fous (1955) ou ponto alto de um Cine-Olho etno-gráfico vertoviano. Contudo, quando a câmara pára, se “encena”, aí o cinema de Rocha consegue atingir os píncaros do Cine-Punho de outro soviético, o seu herói número um da fase pré-exílio: Eisenstein.
Um dos planos mais geniais do cinema de Rocha pode ser visto e apreciado em Der Leone Have Sept Cabeças. Os corpos dos militares do regime controlado pelas agressoras “nações unidas euro-americanas” coreografam uma dança pós-tribal para os nativos, desenhando um círculo que roda à sua volta segundo o passo rápido dos tropas ou à medida que um corpo passa e outro se adianta, de fuzil em punho, para ocupar o seu lugar. Rocha começa por filmar à distância este “espectáculo”, leia-se, esta “demonstração de poder”, até ao momento em que, num ligeiro zoom in (mecanismo que Serge Daney bem dizia ser de opressão) sobre o rosto de um rapaz negro que assiste à cena, a unidade dos corpos se transforma numa massa indistinta que “corta” com as armas a imagem do futuro de África: o rosto da criança, precisamente.
Como num filme de Eisenstein, estabelece-se aqui uma ligação orgânica entre o fragmento visual e o todo-mensagem (pars pro toto; pars in toto), tão ou mais poderoso que um filme-país como é/foi/era para ser ¡Que Viva Mexico! (Que Viva México, 1979); aquele plano lança-nos o punho de um Resiste, África! – o norte-americano Lionel Rogosin aproximara-se desta ideia na profética obra-prima Come Back, Africa (1959). Um das formas de resistência, como também já demonstrara Rouch e noutras paragens Paradjanov, é o folclore, isto é, o dançar e o cantar ante a ameaça do fogo, seja ele amigo (da república fantoche que os colonizadores patrocinaram), seja ele inimigo (dos brancos, eles mesmos e as suas mãos manchadas de sangue). Muitas imagens de A Idade da Terra rimarão com tudo o que este Leão nos diz: a reacção combate-se primeiro cantando e dançando e só depois, talvez, coreografando a guerra.
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