Não era sequer preciso ir à segunda longa-metragem de Glauber Rocha, feita com 25 anos e votado como o melhor filme brasileiro de todos os tempos, para ter uma sensação estranha. Bastava parar quase ao acaso em qualquer uma das suas ficções para sentir que parece que o mundo ficou a dever alguma coisa ao cineasta brasileiro.
Seja pela periferia do Brasil face ao centrismo ocidental (que desde cedo etiquetou o seu cinema como “world cinema”; mais do que como o que realmente foi: um novo cinema no interior do “cinema novo”), seja pela agressividade criativa e teórica com que defendeu as classes desfavorecidas, o certo é que a descoberta da sua opus foi sendo sempre camuflada. Por outros nomes “mais à mão”, por programações à la mode, etc. Se essa falta foi sendo preenchida ao longo dos anos, ainda hoje retrospectivas como aquela que hoje se inicia na Cinemateca Portuguesa, em colaboração com Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, não são abundantes por esse mundo fora. Assim se vai colmatando esse sentimento de dívida que hoje ganha contornos de nova avaliação: poderá o contexto europeu em que vivemos ajudar a compreender melhor (e nesse sentido aproximar de nós) o realizador de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)?
Em 1981, no ano da sua morte, Glauber Rocha explicava que o filme que tinha feito em 1964 (e que marcava a transição da primeira à segunda fase do cinema novo brasileiro) havia nascido da impossibilidade. A impossibilidade de fazer um grande western como Ford os fazia. No interior dessa vontade chocavam ainda as influências soviéticas (não só Eisenstein, pela intenção e pela montagem, mas também Vertov) e o surrealismo de Buñuel. E, claro, ainda ideias de Rosselini.
Este conflito, este choque em Deus e o Diabo na Terra do Sol é bem patente. De certa forma, o filme é um caos acidental (uma espécie de ópera-western no norte brasileiro, uma alegoria política pós-moderna, com o folk e a liturgia a digladiarem-se como sinais do bem e do mal), que obedece a essa operação de desmantelamento de um sistema de produção cinematográfica burguesa. Por outro lado, essa dimensão “negativa” dos cinemas novos (do cinema moderno, tout court) não deixa esconder a construção das certezas narrativas (o lado pioneiro do cinema norte-americano, por exemplo, na sequência da fuga de Manuel após a morte do coronel Morais) e sobretudo das certezas morais (afinal, o filme narra a crise de consciência do seu protagonista, Manuel). É que havia que construir “um mar por sobre esse sertão”, dar ao povo (ao homem) a terra. É provavelmente por causa desse choque que a utilização das baladas que narram os eventos (escritas pelo próprio Glauber Rocha ) e a música de Villas Lobos e as suas bachianas (como numa das cenas mais emblemáticas em que Corisco beija Rosa) não soam a experimentação formal. Que fiquem assim num terreno mais superficial as comparações a El Topo (1970) de Alejandro Jodorowsky ou ao período marxista de Godard.
Obviamente que havia um redemoinho criativo na cabeça do jovem Glauber Rocha (algo que felizmente nunca lhe passou) que estava em vermos as faces dos crentes (como os rostos pasolinianos) e a mostrar-lhes (a mostrar-nos) a alternância dos misticismos e dos marxismos. Essas alternativas, da beleza e da crueldade, do bem e do mal, foram sempre ensaiadas na terra. Nela e por causa dela. Essa terra, e o homem para ela, foram os únicos sinais de Glauber autor. Isto porque a candura e a ousadia estilística, a todo o tempo, fizeram dos seus filmes locais de “possibilidade e contradição”.
Hoje, num período em que todos se apropriam do discurso da crise como metáfora ou justificação até para o ar que respiramos, parece que perdemos toda a legitimidade para a pensar com dignidade e propriedade. Com legitimidade ou sem ela, talvez seja útil rever Glauber Rocha a esta luz, a dos “rifles e dos punhais”. Até porque é em tempos conturbados que nos lembramos que a utopia do cineasta brasileiro – a profecia (o desejo) de que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”- ainda não foi cumprida. Talvez só agora comecemos verdadeiramente a conhecer a “fome”, real e criativa, de que Glauber falava: o que é e de onde vem.
(Se conscientemente não resumi a história de Deus e o Diabo na Terra do Sol é porque essa é a desculpa mais prosaica para ver ou rever o filme nos dias 11 às 21h30 e 12 às 19h30 na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Sem bússola será mais fácil navegar).