As notícias dos últimos dias dão conta de que há um zombie entre nós, ou melhor, de que um “morto-vivo” caminha connosco: chama-se serviço público de televisão. Os que reagem à doença quando a cura já não faz efeito ou os que são apenas reactivos, acríticos e sofrem de problemas de memória auto-iludem-se e dizem que ele está vivo e sempre esteve vivo por estes dias, por estes anos… Os que há muito se preocupam em fornecer a cura de uma doença que se alastra há demasiado tempo, esses não fazem outra coisa que não abanar a cabeça ante o histerismo retórico mais deslocado e oportunista, espécie de voodoo popularucho que, por estes dias, transformou a RTP no bastião inexpugnável do serviço público de televisão.
Nas redes sociais, o povo grita coisas como: “não acabem com o serviço público de televisão”. O poder político macaqueia os mesmos conceitos, também ele sem convocar qualquer tipo de debate sério sobre o que está no centro desta tempestade. E o que é isso? Na minha opinião, a indefinição crónica de que são vítimas dois conceitos: audiência e serviço público. Se o primeiro foi já abusivamente usado por um moço de recados do ministro Relvas para acabar com o segundo canal – como se todos os serviços que o Estado presta estivessem sequestrados pelos mesmos planos financeiros que regem o MacDonalds ou a Coca-Cola -, o segundo é usado, na minha opinião de forma de igual modo abusiva, por todos aqueles que sempre quiseram adiar a discussão em torno do que deve ser e não é a televisão pública.
Enquanto ninguém enfrenta e isola, como o bosão do outro, os conceitos de audiência e serviço público, penso que todos aqueles que se batem verdadeiramente por este segundo assistirão, de novo, aos mais insensatos e irresponsáveis cenários políticos. Claro que, no mundo ideal, os políticos saberiam pensar “por nós”, mas neste mundo, ou sobretudo neste país órfão de uma elite sólida, vigilante e civicamente activa, a realidade exige que o esforço comece no cidadão mais anónimo. Eu, enquanto cidadão anónimo, venho por este meio sentenciar o seguinte: a RTP2 e ainda mais a RTP1 desrespeitam em toda a linha, neste momento e há anos, as obrigações previstas no contrato de concessão do serviço público que os vincula ao Estado português.
Mas isto sou eu que o digo, um cidadão anónimo que gosta de ter alguma memória e que procura não perder a perspectiva sobre os factos, mesmo quando a casa parece estar a arder. Desse incêndio – que começou a ser ateado há muito tempo e por quem da casa – gostava de resgatar três fogachos de serviço público, na área do cinema, que o segundo canal nos presenteou no passado recente, forjando assim a proverbial excepção que confirma a regra. Os três são estreias na televisão portuguesa, dois deles representam uma muito louvável forma de compensação dos lapsos (inevitáveis?) cometidos por quem gere a distribuição comercial de cinema no nosso país.
Il villaggio di cartone (A Aldeia de Cartão, 2011) marca o regresso do veterano cineasta italiano Ermanno Olmi à ficção, quatro anos depois do ainda inédito em Portugal Centochiodi (2007). Desde sempre que a religião ou as diferentes formas da fé, da mais ritualizada à mais terrena, fazem parte da paisagem temática e visual do seu cinema, contudo, estas ganharam maior enfoque sensivelmente desde a estreia de L’albero degli zoccoli (A Árvore dos Tamancos), Palma de Ouro em Cannes no já longínquo ano de 1978. Neste seu mais recente filme, estreado directamente na RTP2, uma igreja serve de asilo temporário a um grupo de imigrantes ilegais que foge não só do seu país de origem mas agora também das autoridades italianas a quem a lei judicial prescreve a imediata detenção/extradição.
O que diz a lei de Deus ao espírito cansado do padre que protagoniza o filme? Uma acção em conformidade com a lei dos homens, nem sempre justa, ou o exercício cristão de dar um tecto e algo de comer aos mais necessitados? A lição religiosa está eivada de questões tão concretas quanto a imagem de um acampamento de homens, mulheres e crianças negras em pleno local de culto ao Deus branco “ocidentalizado”. Não sendo, longe disso, o seu melhor filme, Il villaggio di cartone é uma obra que, pela sua subtileza formal e discursiva, justificava uma estreia em sala. À falta disso, a RTP2 fez tão bem quanto o padre do filme ao dar abrigo à última criação do bom cineasta italiano.
Pa negre (2010), o candidato espanhol ao Óscar de melhor filme estrangeiro no ano passado, também nos chega ao pequeno ecrã celebrando o regresso de um cineasta que deixara óptimas impressões com o seu último filme estreado em salas nacionais, El mar (O Mar, 2000). Falo de Agustí Villaronga, cineasta sensível aos fantasmas históricos nascidos do ambiente opressivo da Espanha franquista e que, com este seu mais recente filme, faz-nos viajar a uma aldeia perdida na Catalunha onde o pico da perseguição anti-comunista ameaça dilacerar famílias e perpetuar a desconfiança e o medo entre amigos (e) vizinhos.
Trata-se de uma espécie de lado B de El espíritu de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973), onde o discurso político fluía quase invisível, como um sussurro entre sussurros, por entre os seus encantamentos sonoros e visuais. Aqui, a opressão mostra-se à tona, impregnando cada respiração, pesando sobre cada palavra, sobre cada gesto, sobre cada troca de olhares, olhares que pertencem aos adultos tanto quanto às crianças, elas que são protagonistas aqui como no filme de Erice. É a partir dos olhos do filho de um rebelde procurado que esta história de intensas atmosferas nos vai espantando. Villaronga assina um dos filmes deste ano, sem com isso ter direito a uma projecção comercial nas nossas salas. Valeu-nos “querer vê-lo” na RTP2.
Milestones (1975) de John Douglas e Robert Kramer foi o momento mais alto da televisão nacional este ano em matéria de programação cinematográfica. Este título foi recentemente restaurado pelas cinematecas portuguesa e francesa e lançado em DVD nos Estados Unidos e em França (e por que não cá, já agora?), contudo, nada me levava a crer que o iria ver pela primeira vez na nossa televisão (até porque as suas cerca de 3 horas de duração não ajudam). Este filme, pedra fundamental na obra de Kramer, foi a cereja no topo de bolo no dia que a RTP2 dedicou por inteiro ao cinema documental. É que Milestones é uma verdadeira raridade e, como o nome indica, marca (de) um período e (de) uma geração. Marca também (de) uma convergência entre duas tendências do documentarismo moderno: o directo e o vérité. A aparente nudez, crua e dura, do que é mostrado colide de frente com uma realidade que, apesar de/por ser reencenada, não perde a sua força de verdade. Irmãos Maysles colidem com Rouch/Morin.
Nesse registo híbrido entre o ficcional e o documental, Milestones conta a história de várias pessoas unidas por valores comuns, versão já amadurecida e desencantada do movimento hippie, que enfrentam, de diferentes modos, momentos de mudança nas suas vidas, por exemplo, a maternidade depois do comunitarismo, a liberdade depois da prisão, a família depois do amor livre… Trata-se de um documento precioso sobre o fim das utopias numa América que começava a ver os loucos e irresponsáveis sixties, do flower power e dos hippies, à distância e os enfadonhos anos do corporate power e dos yuppies ali mesmo ao virar da esquina. Curiosamente, também respondemos hoje a mudanças que o Futuro, hoje sinónimo de uma qualquer catástrofe indizível (que não é susceptível de “cenários”, como se diz tanto em economês), nos impõe sem grandes contemplações. Proponho não cometermos o erro grave de, para o Seu encontro, nos esquecermos de levar o passado e alguma lucidez de presente.