Charles Crichton é hoje lembrado principalmente pelo seu derradeiro filme, A Fish Called Wanda (Um Peixe Chamado Vanda, 1988), que é tanto mais um filme de John Cleese do que seu. Mas o que trago aqui à secção dos filmes recuperados é um dos seus primeiros filmes, Hue and Cry (Hue & Cry – Grito de Indignação, 1947), uma produção do estúdio britânico Ealing Studios, responsável pela produção das mais memoráveis comédias britânicas dos anos 40 e 50 e que reiniciou a produção há uns anos tendo como um dos títulos mais recentes Burke and Hare (2010) último filme de John Landis que passou na anterior edição do MotelX.
Os estúdios Ealing eram casa de um conjunto de realizadores que para além de Crichton contava ainda com Alberto Cavalcanti, Basil Dearden e Robert Hamer [realizador do encantador Kind Hearts and Coronets (Oito Vidas por um título, 1949) onde Alec Guiness desempenha todos os oito papeis referidos no título português], entre outros. Crichton fez cerca de duas dezenas de filmes até ao encerramento da Ealing Studios no final dos anos cinquenta, altura em que se voltou (como tantos outros realizadores e actores da sua geração) para a televisão, onde dirigiu séries e filmes televisivos até ser convidado (já contava mais de 70 primaveras) por Cleese para co-escrever e dirigir o seu maior sucesso. Curioso é reparar que quase todas a comédias de Crichton tiveram o dedo do guionista T.E.B Clarke, em particular as mais conhecidas: The Lavender Hill Mob (Roubei Um Milhão, 1951) filme delicioso sobre um zé-ninguém que elabora um esquema rocambolesco para roubar um milhão em barras de ouro do banco de Inglaterra, The Titfield Thunderbolt (1953) e este de que vos falo, Hue and Cry.
Mas então o que há em Hue and Cry que desperta assim tanto interesse? comecemos pela sinopse. Um mocinho começa a ler histórias de uma revista juvenil com bandidos e aventuras e heróis, apercebe-se que os eventos que lê se estão passando são aqueles que presencia no seu dia-a-dia. Na verdade a revista corresponde a um esquema para uma pandilha de escroques comunicarem os roubos e trafulhices. Parece um filme de aventuras normal para a miudagem e é-o (ainda que os rapazes raptem e torturem uma moça), mas é mais do que isso, faz duas coisas cuja combinação o torna irrepetível: por um lado assume os códigos do cinema negro com as sombras e as cenas escuras e as gabardinas, mas fá-lo sem qualquer tipo de paródia, integra-os como opção estilística de um género que há época ainda dava os primeiros passos ; por outro lado segue um trajecto do pós-guerra de utilizar as ruínas dos bombardeamentos como campo de brincadeira para a criançada, de forma semelhante ao que Rossellini fez um ano depois com Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948). Ou seja temos lado a lado o artificialismo de um cinema carregado de simbolismos junto com o realismo (ainda que muito mitigado) dos horrores da guerra.
Mas aquilo que torna o filme realmente digno de nota é um outro aspecto, a forma como o acto de contar uma história contem uma natureza maldosa, mas como o acreditar nas histórias é coisa cândida. O filme começa com um coro de crianças, puríssimas (e termina com o mesmo coro, só que todo engessado pela pancadaria da cena final), a cantar com as suas agudas e angelicais vozes; o professor apercebe-se que um dos meninos lê uma revista e sem que haja uma pausa na cantoria lança a revista pela janela fora, que esvoaça até aos pés do nosso protagonista (note-se que isto é sintomático do que estava dizendo, o primeiro contacto que ele tem com a história é quando esta é posta no lixo, Crichton e T.E.B. Clarke a avisarem sobre a natureza do texto). Ele primeiro desdenha a publicação, mas como diz o ditado, logo de seguida compra a revista e enquanto a lê vai imaginando os cenas descritas, bandidos, herói. Depara-se então com a corporização do texto, surge-lhe a carrinha dos bandidos, transportando as mesmas caixas descritas e num carro descapotável um homem (o herói?) observa a cena. Ele dirige-se ao homem e percebemos que este corresponde à discrição, mas os bandidos correspondem. O que percebemos é que o contar da história (e a leitura) levou o nosso mocinho à toca do lobo, e tudo o que ele leu torna-se verdade excepto (e aqui é que a porca torce o rabo) a presença salvífica, o herói. Aquele que é o único elemento bom da narrativa, o único que poderia inverter o trajecto dos acontecimentos é o único que não se tornou realidade.
Para tentar desmantelar o gangue os meninos visitam o autor das histórias (um Alastair Sim simultaneamente simpático e arrepiante) que vive sozinho, num último andar com um gato, completamente embrenhado nas suas histórias, incapaz de vir cá para fora e com medo de tudo. Os miúdos querem aventuras, mas eles tem medo, desaconselha-os, mas todos os argumentos que ele usa são as suas próprias histórias, lembrem-se do que aconteceu na história Henry, o denunciante e quando eles o confrontam com, mas isso são só histórias, eles levanta-se atormentado e pergunta, mas vocês não acreditam nas histórias? Então eles, os miúdos, os seres mais crentes, já não acreditam em histórias? e só um homem, velho e já meio demente, é que é capaz de acreditar. É sobre esta crecente descrença do mais novos que Crichton e Clarke se lançam e levam-na às extremas consequências, numa batalha campal com todas as crianças de Londres a correrem para as ruínas combater os mauzões. Porque embora possam não acreditar, todas elas (e todos nós) precisam de uma aventura de vez em quando.