Christian Petzold é um nome sonante por terra de nossa senhora Merkel, mas por cá poucos são os que lhe conhecem o nome. Talvez se lembrem de Yella (2007) que estreou por terra lusas (porque a actriz Nina Hoss recebeu o Leão de ouro pela sua interpretação) ou talvez se lembrem que o Herói Independente do Indie Lisboa em 2007 foi o Novo Cinema Alemão tendo sido exibido o filme de estreia de Petzold, Die innere Sicherheit (The State I Am In, 2000). Com quatro anos de atraso Jerichow (2008) recebe uma estreia tímida no Nimas, é um bom motivo para descobrir um realizador exemplar.
A história de um homem sem futuro que encontra na caridade de um dono de restaurantes e na bela mulher deste um pouso não é nova. Aliás é esse o ponto de partida da novela (que ficou famosa) de James M. Cain, The Postman Always Rings Twice de 1934. Ficou famosa tanto ou mais porque causa das várias adaptações ao cinema que veio tendo ao longo dos anos. A primeira das quais foi pela mão de Luchino Visconti que, por não ter os direitos da obra, chamou ao seu filme simplesmente Ossessione (Obsessão, 1943), mas logo depois Hollywood (já com os direitos) fez The Postman Always Rings Twice (O Destino Bate à Porta, 1946) com Lana Turner e John Garfield. Anos depois fez-se um remake com Jack Nicholson e Jessica Lange, The Postman Always Rings Twice (O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, 1981).
Petzold faz neste filme uma adaptação aos tempos modernos (e ao seu cinema) da novela de Cain. O dono do restaurante é agora um emigrante turco com uma cadeia de drive-in’s; ele, o vagabundo, é sim um ex-militar da guerra do Iraque que regressa a um país que não tem trabalho para ele; ela é uma mulher endividada que o turco resgata da prostituição. Ou seja, os temas da Europa do desemprego e da emigração são dados logo de frente, mas o que desperta mais a curiosidade (e note-se, este é um filme de 2008, um ano apenas depois do explosão [ou implosão?] da bolha imobiliária nos Estados Unidos) a forma como a ligação entre o empresário e a sua mulher se faz através das dívidas ao banco. Se no filme de Visconti o que prendia a mulher ao marido eram as coscuvilhice da terra pequena onde viviam, aqui a mulher adquiriu uma dívida monumental e é o marido rico que lhe paga as dívidas (através de um acordo pré-nupcial que se quebrado lhe devolve o encargo financeiro). Até certo ponto ele comprou a mulher (eu vivo num país onde não me querem com uma mulher que eu comprei, diz a certa altura) e o que será curioso é observar como as relações neste filme se desenvolvem sob o signo do dinheiro (não se pode amar se não se tem dinheiro), algo que já acontecia em Yella.
Em Ossessione o que interessava, mais que a dita obsessão sexual, era a culpa e a forma como um mendigo errante lidava com o ficar preso a uma mulher e a um lugar. Quantos aos americanos o interesse prendia-se com uma paixão mestiça de ódio e morte (de dependência e engano) no caso do original e no remake era o desejo sexual (a luxúria) que liderava as contas. Em Jerichow o que mais interessa é como pode sobreviver (ou não!) a amizade sob o jugo das dívidas.
A abertura do filme dá-se com um confronto, dois homens visitam o nosso protagonista exigindo-lhe o dinheiro que este lhes deve. Percebemos que são amigos de infância e que é tão difícil para um exigir o pagamento como para o outro não poder pagar. Revistam a casa de cima a baixo (a casa da mãe recentemente falecida e que este último vai passar a habitar) e nada encontram. Até que, já cá fora, lembram-se de visitar a casa da árvore, ele avisa que a madeira está apodrecida mas isso não demove o credor e quando desce de lá traz um maço de notas na mão. Este é o momento chave de todo o filme (e vai jogar com o desenlace, já lá vamos) porque quando ele diz que as tábuas da casa estão podres estão-no de facto, o símbolo da sua amizade de criança está em ruínas porque a sua amizade está em ruínas. Foi o dinheiro que destruiu tudo, que apodreceu a amizade. Mas depois disto o filme começa a sua premissa de modernização da novela clássica, e ao passo que nos outros filmes a relação do vagabundo com o empresário era uma de falsidade (o primeiro a enganar o segundo) neste a coisa dá-se de outra forma, entre os homens estabelece-se uma relação de confiança (o empresário deixa o negócio nas mãos do recém contractado) que se consuma no salvamento do empresário de cair de uma falésia (quando a sua morte teria dado aos amantes a liberdade que desejavam).
Se em todos os outros filmes o casal decide assassinar o marido dela e isso faz-se antes do meio da película, aqui o clímax é esse momento. Mas porquê a morte dele se hoje há os divórcios? a resposta é a tal dívida que ela tem e que só a morte dele garantirá a liquidação (ou a liquidação dele garantirá a morte da dívida). Então percebemos de novo que o fim da amizade entre os dois homens dá-se por causa do dinheiro. O empresário toma conhecimento desse fim de relação (e do seu homicídio a ser) quando descobre por entre as ervas (onde o outro se escondia à espera do melhor momento para acabar com o amigo) um isqueiro em forma de carrinho de brincar (que sabemos ser do empregado). De novo temos um símbolo infantil abandonado a servir de finalizador da amizade; se quisesse fazer uma interpretação psicanalítica diria: a presença de um trauma infantil no protagonista (consubstanciada por uma imagética infantil apodrecida) impede-o de desenvolver uma relação de partilha sã, no entanto apenas pretendo salientar o facto de Petzold fechar o filme de tal forma que liga simbolicamente o início e o fim, fechando completamente a acção dentro da película. Mas se por um lado uma história tão burilada só admite viver num filme, as dificuldades das personagens são as de todos os dias.