Julien Maury veio a Portugal para acompanhar Livide (2011), co-realizado com o seu companheiro de sempre Alexandre Bustillo, na sua passagem pelo MOTELx (que acabou por ser problemática, devido a uma troca de cópias). A dupla havia sido responsável em 2007 por um dos filmes mais marcantes do terror deste milénio e daquela a que se chamou a Nova Vaga de Terror Francês: À l’intérieur (Inside, 2007). Pelo meio, teve uma mal sucedida aventura americana. No entanto, as coisas parecem estar a melhorar para Maury e Bustillo, que têm, ao momento, três projectos em mãos. O À pala de Walsh aproveitou a vinda de Julien Maury ao festival de terror lisboeta para meter dois dedos de conversa com ele.
Como é que funciona a sua colaboração com Alexandre Bustillo? Tomam todas as decisões em conjunto?
Sim, basicamente sim. Temos uma colaboração muito simples. Desde 2005, quando nos conhecemos, nunca tivemos uma discussão. Nos dois filmes que realizámos e nos que desenvolvemos mas não filmámos usámos a mesma metodologia: escrevemos juntos, estivemos sempre a trocar ideias por email ou por telefone. Cada um trazia as suas ideias e discutíamo-las, “não, não gosto, arranja outra ideia”. E o mesmo aconteceu em todos os passos, nos storyboards, na planificação. É muito raro, mas tivemos uma discordância sobre como filmar uma cena em Livide. Filmámos as duas versões e deixámos a decisão para a montagem. O juiz foi o Baxter, o nosso montador. É uma relação preciosa.
A chamada Nova Vaga de Cinema de Terror Francês foi uma lufada de ar fresco?
É uma pergunta complicada porque essa é uma visão do estrangeiro. De cada vez que estamos a viajar a apresentar os filmes, as pessoas falam desta Nova Vaga, da sorte que temos, “podem fazer o que querem, têm um cinema de terror muito dinâmico”, mas repare-se nas datas de lançamento dos filmes, entre um filme e o outro há muitos anos de diferença. São como tiros de sniper sobre o público. Em França, os filmes não resultam, são fracassos de bilheteira. Lá fora, é bem melhor. Mas em França ninguém quer saber. A maioria dos críticos odeia o nosso trabalho e o público também não vai atrás, não acredita que um filme de terror francês possa ser bem feito, eficiente e não necessariamente entediante. Sofremos com a imagem do cinema francês clássico: “dois gajos a falar numa cozinha sobre o que é ter trinta anos e não ter filhos e blá blá blá…”. Porque os filmes de terror americanos têm imenso sucesso.
E a situação não se altera com as boas críticas que vêm do estrangeiro?
Em França, os fãs do cinema de terror gostam de nós, temos essa base de fãs, mas as outras pessoas dizem que esse sucesso só acontece porque os estrangeiros não perceberem bem os filmes. Nós temos uma expressão: “nul n’est prophète en son pays”. Ninguém é profeta na própria terra.
Foi por isso que quase todos os realizadores franceses de cinema de terror — incluindo vocês — tentaram a sua sorte nos Estados Unidos.
É uma das razões. O sistema de Hollywood é muito atractivo, porque produz muito cinema de género todos os anos. [Os americanos] acreditam nele, têm essa cultura. As produtoras compram argumentos e depois procuram os realizadores ideais para os fazer. Desde logo começámos a receber argumentos de Hollywood. Em França é diferente, quem escreve o argumento quer realizar o filme. Eu digo sempre: a verdadeira batalha é conseguir fazer este cinema no nosso país. Quantos mais filmes fizermos, maior a probabilidade de fazermos um excelente ou mesmo uma obra-prima. É o sistema dos americanos: milhares de filmes a saírem todos os anos, 3/4 são uma merda, mas um 1/4 é mesmo bom. Essa foi a motivação para aceitar fazer um filme em Hollywood: pensámos que podíamos fazer qualquer coisa de bom com o que nos estavam a dar.
Por que é que essa experiência não resultou?
Nós desenvolvemos um remake de Hellraiser (Fogo Maldito, 1987) e outro de Halloween II (2009), as duas vezes com a Dimension de Bob Weinstein, mas as histórias são diferentes. Quisemos realizar o Hellraiser porque gostamos muito do original e pensámos que podíamos fazer qualquer coisa diferente, um filme que respeitasse a visão de Clive Barker, mas que fosse nosso, até porque não estamos muito virados para o S&M e a cena gay. Conhecemos o Clive Barker e ele foi espantoso, adorou o argumento e as nossas ideias, deu-nos até algumas. Mas descobrimos a armadilha de Hollywood: eles dizem sempre “vocês têm toda a liberdade, são a escolha ideal, façam o que quiserem”. Depois assinamos o contracto, mostramos as primeiras versões do argumento e, nessa altura, eles dizem “muito bem, agora vamos rescrever” e nós dizemos “óptimo, vamos rescrever”. Só que, uma coisa ali uma coisa aqui, começam a destruir o que nós estamos a tentar fazer: “ah, o quê, a protagonista tenta suicidar-se?, não, não pode ser, o nosso filme é para adolescentes, é uma má imagem para apresentar aos jovens”. O nosso protagonista tinha quarenta anos e eles disseram “isto é um filme de terror, é para adolescentes, tem de ter adolescentes com mamas grandes”, eles disseram mesmo isto, “com mamas grandes”. Nós percebemos que íamos fazer um filme que não tinha nada a ver com aquilo com que nos tínhamos comprometido e decidimos desistir. Com o Halloween II, foi um bocadinho diferente. Dessa vez, estávamos em terreno conhecido, sabíamos a saga Halloween de cor. Entregámos um argumento que toda a gente disse que estava muito bom, estávamos preparados para filmar. O problema foi que o Rob Zombie decidiu voltar, tão simples quanto isso. Ele tinha um contrato de dois filmes com a Dimension, tentou fazer um filme chamado T-Rex sobre condutores de camiões e lutadores só que não conseguiu arranjar dinheiro suficiente, então pensou: “posso fazer o filme do Halloween rapidamente, é o meu bebé, a sequela é minha”. Ao pé do Rob Zombie, não somos ninguém.
Ficou alguma ideia do vosso argumento no filme?
Uma ideia, só uma, muito pequenina. A dada altura, vê-se um machado atrás de um vidro. O Michael Myers parte o vidro e caem estilhaços por todo o lado. Foi só isso.
Quais são as grandes diferenças entre o cinema de terror francês e o americano?
É complicado generalizar, mas eu diria que os filmes dos grandes estúdios americanos são produtos calibrados para o público e não a expressão da sensibilidade de um realizador. Estou a dar a nossa experiência como exemplo: eles fazem o que pensam que o público quer. Eles pensam pelo público. Claro que isso dá origem a muitos filmes iguais com a mesma estrutura, com a mesma narrativa, com as mesmas personagens. Se queres fazer um slasher original, toda a gente olha para ti de lado. Um slasher tem de ter um grupo de adolescentes que quer ter sexo e fumar uns charros e no fim são mortos pelo assassino. Esse foi o problema com o Hellraiser, não queríamos fazer a história do costume, porque o filme original não era sobre isso. A primeira coisa que dissemos ao Bob foi: “queremos fazer um filme de terror adulto”. Mas eles não conseguiam perceber, “não, este género é para adolescentes, ponto final”. Em França, há a tradição do “autor”, a visão do realizador é respeitada, o cinema é menos indústria do que em Hollywood, os filmes são arte e não produtos. Em Hollywood são primeiro produtos e só depois arte. É o inverso.
Têm mais liberdade em França?
Temos sempre final cut. Quando se tem dinheiro, é-se livre para se fazer o que se quiser. Temos problemas com as classificações etárias, mas não é a mesma coisa que nos Estados Unidos, onde pedem para cortar cenas. Em França, só temos de nos preocupar se é para maiores de 18, se é para maiores de 16, etc. A Lei francesa é muito clara acerca disso, o autor é que manda no seu filme.
Em À l’intérieur, o vosso primeiro filme, a violência, apesar de ser realista, é absurda, quase surrealista. Corresponde à vossa visão do mundo, pode ser visto como um comentário à violência na sociedade?
Quando fizemos o filme, não pensámos em mensagem alguma. Só queríamos fazer um filme eficiente e dar prazer ao público, era essa a nossa motivação. Mas é verdade que usámos imagens dos motins em Paris, que as personagens vêem na televisão, e usámo-las dramaticamente. Claro que nessa altura o Presidente era muito mais violento do que este e chocava-nos o que acontecia no nosso país. Mas, no fundo, só queríamos fazer um filme de terror puro. Uma das críticas que nos apontaram é que aquela história não era plausível, que era de mais, tinha muita violência e muito sangue. É um primeiro filme, nós queríamos mais, mais sangue, mais violência, mais tudo. Tínhamos a sensação que não voltaríamos a filmar. É o síndrome de primeiro filme, pensámos “vamos pôr tudo neste, porque não sabemos se vamos ter oportunidade de fazer outro filme”.
A primeira parte de Livide é muito realista em contraposição com a segunda parte que é mais sobrenatural. Porquê essa escolha?
É uma maneira tradicional de contar histórias: começar normalmente e pouco a pouco escorregar para a fantasia, para o terror. A primeira parte serve para o público se identificar com as personagens. Em Livide, nós sabíamos que queríamos ir longe no mundo de fantasia e sonho, para isso, tínhamos de ter uma primeira parte próxima do dia-a-dia, muito normal. Era a chave: se o público não estiver com as personagens, na segunda parte vai sentir-se perdido. Houve quem dissesse que a primeira parte era muito longa e entediante, mas também houve quem nos dissesse o contrário, que não gostavam da parte da casa, mas que o princípio era muito bom.
Livide foi de alguma forma uma resposta às acusações de que À l’intérieur era muito violento e sanguinolento?
Sabemos que Livide desiludiu aqueles que gostaram muito de À l’intérieur e o filme foi um verdadeiro sucesso entre os aficionados do terror. Queriam um À l’interieur parte II, mas nós não queríamos fazer o mesmo filme toda a vida. No entanto, nunca pensámos muito nisso, guiámo-nos pela nossa vontade, e essa vontade era fazer um filme de fantasia. Como fãs do terror, adoramos todos os sub-géneros: os filmes de monstros, de fantasmas, de sobrevivência, etc. Se for possível, gostávamos de fazê-los a todos. Também nos demos conta que no nosso país havia poucos exemplos de filmes de fantasia e dissemos “vamos fazer um”. Para tal, pegámos nos mitos e nas lendas muito presentes nalgumas regiões francesas.
Disseram que Livide era influenciado por Argento e particularmente por Suspiria (1977). Este filme mostra mais as vossas influência do que À l’interieur?
É sempre difícil analisar o próprio trabalho, mas diria que se notam menos as influências em Livide. À l’interieur é um trabalho de fanboys, pegámos em elementos de muitos filmes de que gostamos muito, de uma forma inconsciente. Foram os jornalistas que nos apontaram algumas das influências e nós depois dissemos “pois é, é verdade”. Ainda estamos a desenvolver o nosso estilo, é natural que a nossa imaginação parta dos filmes que vimos e dos livros que lemos. Espero que a cada filme a gente digira cada vez melhor as nossas influências. Há sequências inteiras de Livide que são completamente nossas. Mas claro que temos referências visíveis ao An American Werewolf in London (Um Lobisomem Americano em Londres, 1981), ao Suspiria, etc.
Já estão a planear o vosso próximo filme?
Sim, não queremos passar outros quatro anos sem filmar. Estamos a desenvolver vários projectos ao mesmo tempo. Uma das coisas que aprendemos foi que não nos devemos concentrar num só filme, fizemo-lo duas vezes e de cada vez perdemos um ano e meio das nossas vidas. Vamos assinar um contrato com uma grande produtora em Setembro para fazer um filme em inglês, com um elenco internacional; vai parecer um filme americano mas com a liberdade dos franceses. Estamos a fazer figas para que dê certo. E temos mais dois projectos. Um deles é uma curta-metragem a filmar este Inverno que fará parte de uma antologia, na qual o Pascal Laugier e o Xavier Gens também vão participar e se vai chamar Grand Guignol. E com o mesmo produtor estamos a tentar angariar dinheiro para fazer um filme um grupo de miúdos, ao estilo de Stand by Me (Conta Comigo, 1986), mas falado em francês e passado em França. Devemos filmá-lo no próximo Verão.
Qual é a vossa relação com os outros realizadores de terror franceses?
Não os conhecemos a todos. O nosso melhor amigo de entre os realizadores é o Xavier Gens, de quem somos muito chegados. Partilhamos a mesma equipa técnica e tudo. Conhecemos o Pascal Laugier, mas não muito bem. O nosso sonho era criar uma espécie de comunidade como a New Hollywood, com o objectivo de sermos mais fortes juntos. Alguns realizadores criticam muito o trabalho dos outros, acho injusto, porque todos enfrentamos os mesmos problemas, parece-me inútil. Esta antologia é uma excelente ideia, pode ser a primeira pedra para construir qualquer coisa juntos, uma equipa, “nós somos realizadores de terror franceses”…
A tal Nova Vaga de Terror Francês…
(risos) Sim.
Com todos remakes e sequelas, especialmente em Hollywood, o cinema de terror está condenado a repetir-se eternamente?
Já é um bocado assim. Mas o fenómeno dos remakes já existe há muito tempo, é a base de Hollywood, eles sempre reutilizaram o que já se fez. O Pascal Laugier é muito pessimista, acha que os filmes de terror de Hollywood são vazios e esquecíveis. A mim parece-me que o sistema de Hollywood conseguiu sempre reinventar-se. Quando mais não seja, através de realizadores estrangeiros. Ou talvez o futuro esteja fora dos estúdios. Estou a pensar, por exemplo, no Ti West. Gosto muito dos seus últimos filmes, ele tem liberdade para fazer o que quer. Ou então talvez um dia o público se canse e os estúdios sejam obrigados a mudar. Mas, neste momento, os filmes de terror ainda fazem muito dinheiro.
De entre os novos realizadores de terror, quais os que gosta mais?
Em França é complicado, porque não têm saído filmes… Estou a lembrar-me de um filme italiano que nem é de terror, La solitudine dei numeri primi (A Solidão dos Números Primos, 2010), muito influenciado pelo Giallo, na música, naquela sequência inicial com os miúdos… Quando vejo um filme desses, fico com esperança: há uma nova geração de realizadores que têm as mesmas referências que nós e não querem fazer à americana, estão a fazer a sua coisa. Gostamos de quem usa as referências da própria cultura para criar algo diferente. Defendemos as particularidades de cada país contra o sistema de Hollywood. Concordo com o Pascal, de que a nosso cérebro foi formatado por todos os filmes americanos que vimos e pelas séries e por toda a cultura americana. É isso que causa a sensação de estranheza no público. Os americanos mostram tudo, o que está certo e o que está errado, quem é o protagonista que devemos seguir, quem é o mau da fita… Nós odiamos isso, gostamos de misturar tudo, para baralhar o público, é por isso que os maus da fita dos nossos filmes, os monstros, não são monstros, são humanos. A heroína de À l’intérieur é a Béatrice Dalle, ela é a verdadeira vitima. Na vida não há só preto e branco, mas os filmes de Hollywood fazem-nos acreditar que sim. A nossa cultura é da dúvida. Eu não tenho a certeza de nada, estou sempre a duvidar.