Crawl (2011) de Paul China
Há bem pouco tempo falava-se por aqui da forma como o pós-Apocalipse se ia lentamente vertendo em género. A julgar pela frequência com que jovens realizadores da área do thriller e do terror decidem recriar (vá lá, sejamos bondosos, citar) Blood Simple (Sangue por Sangue, 1984) dos irmãos Coen, parece que a mesma operação de criação de um sub-género está em causa. Há dois anos era Red, White & Blue de Simon Rumley, este ano é Crawl, do cineasta britânico a viver na Australia, Paul China. Não é que venha daí mal ao mundo (muito pelo contrário, a julgar pelo prémio de melhor realizador que ganhou no ScreamFest do ano passado). Essa pausa na acção, esses momentos de suspensão para agigantar a tensão são tudo elementos apetitosos a uma primeira obra. A grande questão é outra. Não é tanto a dedicação aos Coen, a Lynch [Blue Velvet (Veludo Azul, 1986)] ou a Polanski [Death and the Maiden (A Noite da Vingança, 1994)], aos objectos hitchcockianos (a chave, o anel, a faca) que está em causa, mas sim a dos limites de um estilo. A aposta conservadora, que consiste em citar o estilo de outrem, parece não deixar espaço a China para algo muito pessoal: o croata é o detective Loren Visser (só muda ligeiramente o chapéu); a cena do moribundo que rasteja como no dito filme; o brilho da faca como em Halloween (O Regresso do Mal, 1978); a música é a de Herrmann em Psycho (Psico, 1960), e por aí fora. É nesse sentido que Crawl é um melting pot de bons dispositivos, às vezes com dificuldade em controlar a estilização, outras vezes tirando grande partido das limitações (penso na dupla de detectives que vem visitar o dono do bar que poderia ter saído da primeira fase de Peter Jackson na Nova Zelândia). Filmado em digital, cinemascope, Crawl é então um filme que copia para poder aprender. No entanto pede-se normalmente a um bom aluno que não saiba apenas a matéria dada mas que tenha ideias próprias. Nisto China podia ser mais ousado.
Vuanpaia (Vampire, 2011) de Shunji Iwai
Maldita a hora em que Abel Ferrara fez The Addiction (Os Viciosos, 1995) que teve o condão de recambiar o vampiro para o território do drama. A consequência é tê-lo transformado num choninhas solitário, que chora, sente, ama e tem dilemas existenciais, como se se quisesse extrair de qualquer filme de vampiros a mesma compaixão que tivemos por Boris Karloff em Frankenstein (1931) . Que diria Sartre de tudo isto? Inspirado num caso real de um serial killer japonês que colocou um anúncio à procura de vítimas que se quisessem suicidar, o japonês Shunki Iwai [Riri Shushu no subete(All About Lily Chou-Chou, 2011)] segue os dilemas de um jovem professor de biologia (o choninhas) que passa o tempo a construir engenhocas com balões para a sua mãe que sofre de Alzheimer se locomover melhor e a extrair, numa marquesa à la Dexter, o sangue de jovens com aspiração a suicidas. A câmara irrequieta, por vezes elegante, do japonês denuncia uma pretensão autoral, paredes meias com um romantismo parvo-adolescente herdeiro da saga Twilight. Por vezes, o filme quer criticar e usar de forma inteligente essa adolescência gótica para se demarcar do verdadeiro dilema do seu protagonista (patente na cena do festa dos falsos vampiros), mas rapidamente cai na mesma armadilha quando transforma imagens sugestivas (como a dos ditos balões, brancos, enormes) em símbolos de qualquer coisa leve, a esvoaçar. O filme parece demorar em concluir e fica-nos a problemática: porque é que a condição/dilema do milenar vampiro de repente se transformou num problema da contemporaneidade? Só a essa luz se pode compreender um travelling circular de 360º tão ostensivo e operático do protagonista a morder um pescoço. Deve haver lá poesia, é só questão de dar com ela.
The Butterfly Room (2012) de Jonathan Zarantonello
O filme deste italiano radicado nos EUA tem um universo visual de partida que adivinha que pouco mais se fará além de mostrar esse achado de ideia. A ideia é aplicar ao humano as mesmas operações de taxidermia que se aplicam às borboletas. Contudo, e sem nunca esconder as suas limitações (a gestão pouco hábil da visualidade dos flashbacks, a luz amarela escusada com que vemos o passado), Zarantonello não foi preguiçoso. Primeiro, essa ideia de juntar a Barbara Steele [La Maschera Del Demonio (1960)] outras scream queens que nomeamos porque é um gosto revê-las, algumas de aspecto tão ou mais empalhado que as ditas borboletas. São elas: P.J. Soles [Carrie (1976)], Camille Keaton [I Spit on Your Grave (1978)], Adrienne King [Friday the 13th (Sexta-Feira 13, 1980)], Heather Lagenkamp [A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street 1984)] e Erica Leerhsen [do remake The Texas Chainsaw Massacre (Massacre no Texas, 2003)]. Em segundo lugar, porque The Butterfly Room constrói com algum interesse o tema da obsessão maternal que roça a pedofilia psicológica. Barbara, cujo olhar abre o filme, tem tudo para essa maternidade doente funcionar. Depois, finalmente (aposto que esperavam pacientemente), essa personagem perfeitamente bizarra, uma prostituta sem uma perna, que surge para logo desaparecer, indicando essa “falta” de uma parte, mas que tem essa preciosidade que não a interessa, que vende: a maternidade. Um filme simples, cheio de complexidades escondidas, inversões aprisionadas, de que à primeira vista não se parece dar conta.
[REC]³ Génesis (2012) de Paco Plaza
O “génesis” do título é o fim da saga. Até aqui não digo nada de surpreendente ou então digo, porque parece que está na calha um quarto capítulo. De qualquer modo, quando digo “fim” não falo só “da saga”, mas vou mais longe: eis o fim da saga no próprio filme. Este terceiro tomo foi tomado de assalto por Paco Plaza, pondo à margem o contributo de Jaume Balagueró, para que se perpetrasse uma dupla traição: primeiro, sobre o dispositivo formal que tornara a atmosfera dos dois primeiros capítulos, a espaços, quase irrespirável e, segundo, sobre o tratamento cru – parodiado aqui por um operador de câmara que parece obcecado mais pelo termo cinéma vérité do que pela sua real substância – de factos documentados em modo de reportagem televisiva aberta ao mais imprevisto teatro de horrores. Quando o título surge, mais tarde do que é costume, sobre o escuro do ecrã pensa o espectador que o tom descontraído em torno de um casamento de sonho que acaba num banho de sangue irá insidiosamente mergulhá-lo na mais profunda obscuridade… Mas não: num estranho golpe de “marketing invertido”, o título não anuncia o que aí vem mas o que acaba de passar (o princípio do fim para le véritable [REC]³…), já que a câmara se “exterioriza”, perde o seu enleio dispositivo e o registo aligeira-se ainda mais num ambiente geral de paródia a toda a série. A câmara deixa de gravar como gravava e o que gravava agora faz rir sobranceiramente na face do Horror – uma heresia para quem, como eu, era apreciador dos filmes da sociedade Plaza e Balagueró. (LM)
La Terza Madre (Mãe das Lágrimas: A Terceira Mãe, 2007) de Dario Argento
Quase trinta anos depois, com La Terza Madre, Dario Argento encerra mais uma trilogia e nisto há que saudar a meticulosidade do italiano. Desta feita, trata-se da trilogia das mães, um intrincada história sobre um triunvirato de bruxas que no século XI que deram origem às artes da magia negra e da feitiçaria. Estas governavam o mundo a partir das mansões construídas em três partes distintas do mundo: Mater Suspiriorum em Friburgo [Suspiria (1977), Mater Tenebrarum em Nova Iorque (Inferno (1980)] e agora Mater Lacrimorum em Roma. Com tamanho tale, era difícil a Argento evitar com La Terza Madre longos períodos de exposição. Contudo, permanece nesta conclusão a articulação entre uma certa ingenuidade dispositiva (Asia Argento, uma espécie de Courtney Love a puxar para o gótico não evita algumas gargalhadas; as sequências dos fantasmas) e um extremismo formal que compõem muito do que é o Argento’s touch. Hoje talvez a ingenuidade seja mais difícil de manter e por isso o italiano tem necessidade de a “compensar” com o incremento da violência gráfica. Entre tripas e olhos arrancados (não é que isso seja novo no seu universo, mas aqui parece-nos refém de uma atitude menos pós-moderna e também menos apoiados pela música), Argento quer aproximar-se da encenação de uma segunda queda de Roma. As intenções são boas, a trilogia acaba por ter um fim interessante, mas talvez haja pouco tempo de filme para realmente lá chegar, a essa queda.
Red State (2011) de Kevin Smith
Quando se diz que Kevin Smith embarcou nos territórios do terror fica a dúvida: does he have what it takes? Iria o seu universo de ridículos poluir o horror, ou abertamente teríamos a enésima comédia de terror? Ao ver este Red State, baseado numa seita extremista religiosa que odeia homossexuais, a resposta não é nenhuma das alternativas. Essa premissa real que parece uma comédia não deixa de funcionar como uma espécie de caricatura mas que abre portas a tudo o que Smith quer atingir: o conservadorismo americano, a religião (pois claro), o uso obsessivo de armas de fogo e a caça ao terrorismo iniciada pelo 11 de Setembro. Red State é então essa crítica omnisciente, por vezes pouco pensada e verosímel, que mistura de forma bizarra, a sátira, o horror, o filme de acção. Essa mescla poderia trazer uma certa complexidade ao filme, mas é provavelmente afinal esse espírito cabotino, de que Kevin Smith não se consegue livrar, que o faz passar por tudo como quem passa por nada. A ironia reside sobretudo no facto de Red State dever tanto a um filme como The Hills Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977) de Wes Craven, como ao documentário Jesus Camp (2006), sobre um campo de férias que recruta crianças para serem autênticos “soldados do senhor”. Registamos a fotografia escura de David Kein e a velocidade da Red Digital Camera, o esforço de John Goodman e o casting perfeito de Michael Parks como líder da seita.
Mientras Duermes (2011) de Jaume Balagueró
Enquanto outros se dedicam a canibalizar (e a desvirtuar) o espírito de [REC] (2007) – veja-se a entrada para a sessão de abertura do Festival, com [REC]³ Génesis – Jaume Balagueró, um dos seus criadores, já partiu para outra. Não é que seja totalmente diferente, mantém-se o interesse pelos espaços fechados, mas agora trabalha-se sobretudo o suspense e a visceralidade a que podem levar as patologias da solidão. Com um absoluto controlo de ritmo, Mientras Duermes, o melhor filme visto por nós até agora no festival, acompanha o porteiro de um prédio (a asfixiante presença de Luis Tosar) com hábitos pouco convencionais. Ser porteiro pode ser uma profissão avessa à felicidade [Murnau já o dizia com Der Letzte Mann (O Último dos Homens, 1924)], e Balagueró, inpirando-se numa história verídica, interessa-se sobretudo na relação entre a servilitude e a organização de um quotidiano sem perspectivas pessoais de realização. O porteiro vê tudo (poucos o vêm e alguns vêem-no mal) e permite-se desenvolver obsessões por inquilinos, transgredindo o seu espaço e desordenando os seus ritmos de felicidade. Com alguns ecos de Hable com Ella (Fala com Ela, 2002) de Pedro Almodóvar, Mientras Duermes consegue abordar o distúrbio emocional de alguém que, para todos os efeitos, é um criminoso e colocá-lo no terreno do drama, dizendo o bastante dessa condição contemporânea do que é estar só, acompanhado.