Na passada sexta-feira, dia 21 de Setembro, o governo, nas pessoas do secretário de Estado da Cultura e do ministro da Educação, anunciou na sala principal da Cinemateca Portuguesa o lançamento do Plano Nacional de Cinema, que inclui várias dezenas de filmes, curtas e longas-metragens de diversas proveniências, mas com especial destaque dado à produção nacional, e que será testado numa primeira fase em 23 escolas de todo o país. As escolhas (que o leitor pode consultar aqui), objectivos e intenções deste Plano têm merecido as mais variadas reacções. Também nós, aqui, damos conta das nossas impressões.
Desculpem-se se começo por abordar uma iniciativa com tão boas intenções como o Plano Nacional de Cinema (PNC), apresentando na última sexta-feira na Cinemateca Portuguesa, com algum pessimismo. É que penso realisticamente que há motivos para isso. Em primeiro lugar, se o objectivo é a formação do olhar das crianças e jovens na relação com o cinema, e mais genericamente com o fenómeno audiovisual, o que é que nos garante que a “politiquice” não falará mais alto (de novo) e que, como em 1991, o plano não cairá por terra quando mudar a cor do governo? Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e norte-americanas. Hoje estar atrasado é uma expressão que já nem define completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life, iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo menos.
Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o dispositivo artístico cinematográfico. Desta forma, parece incrível mas é verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a visão não é necessário aprender a ver. Esse é um papel de cidadania importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas. Mas tudo isto parece tão óbvio que por isso mesmo merece ser repetido.
E depois há outros elementos que convém ter em conta no pensamento de uma formação no quadro de um PNC (embora Alain Bergala no seu L’hypothèse cinéma já os tenha dissecado quase todos em 2002):
– Dotar os professores de formação adequada por forma a ensinar os filmes como objectos de direito próprio, como arte e meio de expressão, para além do receptáculo de conteúdos que os jovens podem discutir a propósito de cada disciplina. Ensinar a ver um filme, a ler uma sequência de imagens.
– Como explicar a forma como o cinema pode ser um “espelho” da realidade, uma plataforma para discutir inúmeras questões de todas as áreas?
– Estruturar o uso do cinema para fins pedagógicos de forma também a mostrar a História da própria sétima arte;
– Combater as grelhas críticas de análise aos filmes enquanto objectos fechados e redundantes;
– Articular as diferentes dimensões temporais dos filmes (ou clipes) com a duração das aulas;
– Articular o ensino e os filmes de forma a que não se renuncie ao universo que os jovens reconhecem como seu (obras que estejam perto de si), mas sem nunca abdicar da “violência construtiva do desconhecido” que os clássicos do cinema ou obras importantes do cinema contemporâneo podem trazer.
– Apesar da importância de estabelecer uma relação com o domínio emotivo do cinema (ele é uma espectáculo e uma arte que convoca sensações), não deixar de ser cirúrgico na relação com a linguagem do cinema, tendo como efeito reflectir sobre certas questões: porque é que um filme, ou uma cena é má? Ou boa? Ou perversa? Ou complexa?
Algumas questões parecem estar a clarificar-se no projecto piloto prestes a arrancar este ano em 23 escolas do país. Mas estes pontos referidos, que passam muito pela formação dos professores e articulação dos filmes escolhidos com os planos curriculares de cada área e ano, são decisivos se o desejo é o de realmente inserir o cinema na formação dos indivíduos. Esquecê-los equivale a percorrer meio caminho. Equivale a “olhar sem ver”.
Uma nota. Se é muito positivo começar pelos jovens, a julgar pelas entrevistas aos pais a propósito de próprio plano, fica-se com a sensação de que a iliteracia audiovisual em Portugal é um verdadeiro abismo que não sei se iremos a tempo de transpor.
Carlos Natálio
Olhando para os filmes que constituem este Plano Nacional de Cinema, iniciativa que me parece muito positiva e que, de algum modo, poderá propiciar uma tão necessitada “pedagogia do olhar” nas nossas escolas, tenho a dizer que as escolhas me parecem sensatas à luz dos diferentes programas lectivos – que ainda terei relativamente bem presentes, se não mudaram muito desde os meus anos de liceu. Politicamente, temos razões para desconfiar desta medida, já que esta é trazida à luz por um executivo que se tem mostrado pouco preocupado com a cultura cinéfila (e não só…) dos portugueses, seja nas escolas (com, por exemplo, o desinvestimento no projecto escolar ligado à Cinemateca Júnior), seja na televisão (com a destruição do único canal que ainda vai mostrando o cinema que, como diz o actual secretário de Estado da Cultura, vai além de Quentin Tarantino). Contudo, como diria um Sylvester Stallone num dos seus dias mais inspirados, quando as medidas são boas por si elas são boas por si – tenho, aliás, de confessar que estou surpreendido com o arrojo geral deste plano e com a forma célere como passou da teoria à prática.
Temos de estar cientes que não há planos perfeitos, por isso, é natural estranharmos mais as ausências do que entranharmos imediatamente o rol de títulos apresentados. Ainda assim, penso que devemos olhar para os filmes nomeados, e a sua devida arrumação por anos lectivos, partindo da finalidade didáctica ou pedagógica a que se destinam. Passando rapidamente os olhos por todos os filmes, vejo que se privilegiam as narrativas centradas na “perspectiva da criança”, algo absolutamente evidente no 5.º ano [exemplo da inclusão de Aniki Bóbó (1942)] e no 6.º [exemplo de The Kid (O Garoto de Charlot, 1921) ou, pasme-se!, Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987) de Abbas Kiarostami], mas que, e dando agora um salto grande, ainda está patente no penúltimo ano do secundário [veja-se como chega algo tarde uma obra-prima intemporal, e para todas as idades, como é Les quatre cents coups (Os 400 Golpes, 1959)].
Pese embora este predomínio do “olhar da criança”, não há dúvidas que os filmes e as suas personagens (lá dentro) acompanham (cá fora) o crescimento dos alunos. No 9.º ano fala-se abertamente de uma paixão “maior que o mundo” entre um rapaz e uma rapariga, na versão moderna do grande clássico Romeu e Julieta, que seguramente poderá ser criticamente “relida” em articulação com o programa de Português. No 10.º ano, Rafa (2012), aquele que deverá ser o filme mais recente na lista, lida num registo realista (e nesse aspecto um ano depois a obra-prima de Truffaut será “a cereja no topo do bolo”) com as questões da pobreza e das “dores de crescimento” num bairro periférico da capital. Da mesma forma, fico muito contente – e positivamente surpreendido – com a presença de um título como L’esquive (A Esquiva, 2003). O filme de Abdel Kechiche é uma visão grave, adulta e, digo eu que conheço a realidade da escola pública, extraordinariamente significativa sobre o lugar da rua e da escola no universo da adolescência. Será um pretexto perfeito para se pensar in loco os problemas da escola e da sociedade – nas cadeiras de Filosofia, Sociologia ou mesmo Português, por exemplo.
Antes de passar para o último ano do plano, no qual o aluno é já pré-universitário, estando portanto a um pequeno passo de dar um grande passo na sua vida, queria só responder a algumas reacções intempestivas que tenho visto na comunicação social, nos jornais e na Internet, e onde tem vingado a ideia de que esta lista dá uma visão muito incompleta da história do cinema, que pretere obras-primas a favor de obras menores, etc. Bem, desde logo, sugiro que se comece por analisar esta lista do ponto de vista da escola. Depois, recomendo que se ponham “em segundo plano” os discursos sobre a “relevância estética” das obras seleccionadas e, ao invés, não se perca de vista que os filmes em questão terão de ser postos em diálogo com as matérias das diferentes disciplinas, que, na sua maioria, não serão leccionadas por professores-cinéfilos; logo, em termos muito práticos e directos, esta lista tem de ser clara, simples e funcional, com vista a facilitar o trabalho de alunos e professores no contacto com as matérias a ministrar.
Feita esta ressalva, que penso ser fundamental para pormos as coisas no seu devido lugar, devo dizer que o 12.º ano me parece uma excelente porta de entrada para a descoberta de uma linguagem e a sua evolução na história: Méliès, Hitchcock, Fernando Lopes, Varda e Oliveira. A partir de qualquer um dos títulos escolhidos o aluno encontrará um bom ponto de partida para futuras descobertas. Tenho lido alguns comentários de estupefacção face à escolha de Torn Curtain (Cortina Rasgada, 1966), em detrimento das principais obras-primas de Hitchcock. De novo, se seguirmos a minha sugestão de se pensar a lista do ponto de vista da escola, então talvez aí se perceba a finalidade desta escolha: provavelmente por ser um filme de Hitchcock temporalmente delimitado, este thriller de espionagem sobre o clima quente da Guerra Fria acaba por servir muito bem os intuitos de um programa de História que, se não estou em erro, já narra por esta altura os acontecimentos mais marcantes do século XX.
Luís Mendonça