Pronto. Acabaram os dias de sol, passados de barriga para o ar, roupas de cores ridículas contra a pele estorricada e neurónios, a funcionar a 10 à hora, que não toleram nada mais que a linha do horizonte, o azul do mar e o azul do céu. Acabou-se o que era doce (ou o que era salgado do mar…): a escolinha está aí, com as roupas desconfortáveis, o risco ao lado traçado com firmeza pela mãezinha excessivamente diligente, as pesadas mochilas, toda a tralha (que parece não servir para nada) dentro do estojo e, acima de tudo, a disciplina implacável aplicada por aquela professora e por aquele professor que parecem ter esboçado o seu último sorriso nos tempos idos do saudoso senhor do Trólóló.
É dia de regresso à escola numa pequena aldeia francesa e uma criança, ensopada dos pés à cabeça, chega atrasada à primeira aula depois de ter resgatado do rio a pasta da escola que ela própria lançou para a água, na sequência de um desafio maldoso que lhe foi colocado por um amigo. O rapaz, mesmo depois de ter recuperado a pasta, deixara-se levar pela corrente do rio, deitando-se sobre as rochas, nadando sem destino, observando e brincando com os elementos da natureza. A natureza tornou-se, em certo sentido, o seu – só seu – recreio hedonista, onde este dá a si mesmo – ou lhe é, metafisicamente, oferecida – permissão para se esquecer dos problemas que se avizinham (terá de prestar contas ao professor e, a posteriori, aos seus pais pelo atraso, pelas roupas molhadas, a pasta e o material escolar danificados). Neste hiato, há como que uma suspensão do tempo e do sentimento de culpa – subitamente, uma alegoria sobre a infância desencobre-se no deslumbrante Rentrée des classes (1956) de Jacques Rozier.
Luís Mendonça
Fim de brincadeira? Nem pensar, pelo menos é assim que Fellini recorda os seus anos de infância em Roma (Roma de Fellini, 1972). Os filmes começam pelo princípio (uns pelo princípio do universo, entenda-se Malick) e para Fellini o princípio é a escola primária, um seminário, todos de uniforme. Depois do jantar há entretenimento: uma sessão de slides apresentada pelo professor de história sobre Roma, começa pela loba depois passa pelos vários monumentos (quando chega ao bolo de noiva, o monumento a Vítor Emanuel II que foi símbolo fascista, todas as crianças batem palmas, é o hábito e são os hábitos) e logo depois vem uma imagem que provoca estranheza, um moça de bunda à mostra. Primeiro espanto, depois euforia infantil. A imagem que vêm corresponde ao slide ofuscado pelas cabeças e braços que toda a turma agita histericamente. Logo ali, na infância Fellini percebia que o cinema era essencialmente uma arte sexual. Mas como a escola é local de aprendizagem, lá vem o director e todos cantam o hino fascista. Não é o Trólóló mas a letra é parecida.
Ricardo Vieira Lisboa
O “regresso” de Peggy Sue às aulas dá-se por artes mágicas (que não interessa explicar, nem o próprio Coppola se dá a esse trabalho). Numa reunião de liceu, em que todos, ela e os colegas, estão 25 anos mais velhos, pouco depois de ser re-coroada Rainha do Baile (como se vê neste fotograma, em que já se lhe notam os suores frios e as tonturas), dá-lhe o badagaio. Pensa que morreu, mas não, apenas regressou ao passado, à mesma escola onde tinha andado e se tinha apaixonado e tinha vivido os melhores anos da sua vida. Deste regresso às aulas, também não se pode dizer que tenha sido o fim das brincadeiras, antes pelo contrário. Peggy Sue descobre-se num tempo em que ainda não tinha filhos, nem responsabilidades, em que toda a gente estava viva (suprema felicidade), e aproveita para repetir os erros da sua juventude e acrescentar mais uns. Peggy Sue Got Married (Peggy Sue Casou-se, 1986) é um dos grandes Coppolas secretos, como quase todos os seus filmes da década de 80. Este é especialmente maravilhoso, em todos os sentidos da palavra.
João Lameira
Há um momento na minha memória onde imediatamente essa dupla instituição de formação (e deformação) da identidade que são a escola e a cinefilia, se encontram. Ele é claramente Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987) de Abbas Kiarostami. Desde o início da sua carreira que o iraniano, com o financiamento da Kanun (Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Adolescentes) utilizou a escola como espaço privilegiado para as suas preocupações dramáticas. Este foi um crescimento lento em que se discutiam problemas morais de comportamento (das crianças, dos pais) e que faziam fluir a institucionalidade documental e a liberdade ficcional. Onde terminaria esse crescimento? Não se sabe bem, ou talvez aqui, nesta flor, colocada por Ahmed no caderno do amigo, o símbolo mais singelo e brutal de amizade que provavelmente Kiarostami foi até hoje capaz de criar. O amigo arriscava a expulsão se à quarta vez consecutiva não levasse o trabalho de casa feito para a escola. Ao chegar a casa, Ahmed, ao dar-se conta que levou o caderno dos trabalhos deste por engano, parte em busca da casa do amigo. Era uma odisseia, era um trabalho de herói. Quem se sacrificava assim por outra pessoa era tudo menos criança. Depois deste filme começou para eles a idade adulta. E só tinham 8 anos…
Carlos Natálio