Não seria preciso ler a biografia de Rafi Pitts para perceber que algo o diferencia dos restantes cineastas iranianos: o olhar estrangeiro. Dir-se-ia mesmo ocidental. Para isso, bastaria ver Shekarchi (Ali – O Caçador, 2010). Lida a pequena biografia na Wikipedia, tudo faz sentido: Pitts não nasceu no Irão, nasceu na Pérsia; pouco depois da revolução de 1979, que levou os Ayatollahs ao poder, foi viver para Inglaterra (terra natal do pai), onde estudou cinema, tendo depois trabalhado em França. Só voltou ao seu país — para filmar — nos anos 90.
Ainda assim, não se pode afirmar que Rafi Pitts esteja completamente de fora do cinema iraniano. Dele guarda, pelo menos, o gosto pelo absurdo, a maneira como o aleatório toma conta da normalidade (ou como a normalidade é o aleatório), uma certa economia narrativa. E se o olhar de Pitts é estrangeiro, é o do estrangeiro a olhar para a própria terra. Passe o paradoxo. Ou melhor, o cinema de Pitts vive desse e nesse paradoxo.
Formalmente, Shekarchi traz à lembrança Michelangelo Antonioni, pelo rigor com que é filmada a geometria dos edifícios, das estradas, dos túneis, da Teerão em constante movimento, mesmo da floresta (espaço mais caótico), ou até pela montagem, que antecipa e/ou regressa a momentos, criando raccords misteriosos (logo ao início, quando Ali engata a espingarda e de repente é noite; mais para a frente, quando inexplicavelmente se deixa apanhar pelos militares). A fotografia de Mohammad Davudi, de cores terra, muito contrastada, assemelha-se à que Robby Müller fez para Wim Wenders em Paris, Texas (Paris, Texas, 1984), por exemplo; e também à de muitos filmes de Aki Kaurismäki.
Tematicamente, Pitts aproxima-se mais dos seus conterrâneos (porventura, vai mais longe do que Jafar Panahi ou Abbas Kiarostami), apontando (mais ou menos veladamente) o dedo acusador ao regime, denúncia formalizada em pequenas rebeldias: o matraquear dos discursos no rádio do carro (da altura da Revolução Verde?), os ecos das manifestações (e as balas perdidas que encontram a família de Ali), o campo/contra-campo claustrofóbico de cada vez que Ali lida com a burocracia (o patrão, a polícia), num mundo em que ninguém está para ajudar ninguém. Depois há aquela explosão de raiva (contida até então na impassibilidade da face de Pitts, que também protagoniza o filme): um acto terrorista por excelência.
Posso ter dado ideia que no conteúdo será mais iraniano e na forma mais ocidental, o que é não só simplista como pouco exacto: por vezes é o contrário, as fronteiras neste “território” são bem mais movediças. O cinema de Rafi Pitts (e Shekarchi em específico), por muito que se construa na conjugação destas referências, não é mera soma das partes. O resultado é antes uma qualidade onírica que, essa sim, é a essência do filme e da autoria de Pitts. A partir do momento em que as personagens penetram na floresta (e de lá não conseguem sair), a lógica deixa por inteiro de ser a da razão para passar a ser a do sonho. Ou, como a realidade do Irão não é propriamente para alegrias (principalmente para quem olha de fora), a do pesadelo. E no entanto, apesar de retratar a crueldade do destino, a crueldade de um país, nunca perde a leveza (tanta que o filme que dura hora e meia parece que dura metade), chegando a roçar a comédia, mesmo que negríssima. Shekarchi não é cinema iraniano nem europeu, é cinema de Rafi Pitts, um mundo que se descobre com prazer.
Shekarchi estará em exibição apenas no Espaço Nimas em Lisboa.