Entre o cinema de ficção científica e de terror, Xavier Gens ensaia em The Divide (Os Humanos, 2011) a sua versão do pós-Apocalipse, um tema que já merece ganhar foros de género. Filmes pós-apocalípticos há muitos, como diria o outro, uns usam mais do humor, outros preferem filmar os horrores dos que ficam depois do “fim dos tempos”. Gens escolhe este último caminho.
The Divide parte de uma premissa interessante, ainda que por de mais conhecida: um grupo de pessoas encerrado num espaço fechado do qual não pode sair. Quando uma bomba nuclear eclode no centro de Nova Iorque (em rima com o 11 de Setembro), nove pessoas fogem para a arrecadação de um prédio: o porteiro (à falta de melhor tradução para superintendent), uma mulher e a filha, um casal de namorados (ela valente, ele intelectual choninhas com os óculos partidos), dois irmãos (o responsável e o mauzão) e o melhor amigo de um deles, e o inevitável representante das minorias, um afro-americano (não menos previsivelmente, das figuras mais simpáticas). Estão presos sob as ameaças das radiações e dos estranhos militares que nunca se saberá de que país são nem quais os objectivos (o mistério é sempre salutar).
Claro que o o que interessa aos argumentistas Karl Mueller e Eron Sheean e a Xavier Gens é menos o que está lá fora do que o ficou lá dentro. A escolha das personagens demonstra a vontade de criar a representação o mais abrangente possível da humanidade (o título português desta vez é certeiro), para melhor montar o espectáculo da sua degradação: das tensões iniciais até à violência discricionária; da entre-ajuda até ao sadismo; da democracia até à ditadura mais intolerável; da procura do carinho do outro até à violação; da sanidade até à loucura. O repertório habitual. Essa será uma das falhas de The Divide: não acrescenta muito ao que já se viu em filmes similares, para lá de um lado mais repugnante do que o habitual — Gens não esconde ao espectador os momentos nojentos [o que, se se atentar à sua filmografia, principalmente a Frontière(s) (Fronteira(s), 2007), considerado um dos filmes de terror mais brutais dos últimos anos, não espanta]. No fim, aqueles que se transformam nos vilões, carregam consigo as marcas físicas da sua corrupção: a falta de cabelo, os olhos vermelhos, o ar doentio. Serão já mutantes.
O problema é que Xavier Gens não sabe o que fazer com o pouco espaço que tem, socorrendo-se de uns travelling-vaivém desnecessários, com medo de ficar parado (as costumeiras câmara e montagem frenéticas também comparecem na arrecadação, presenças um tanto indesejáveis). Se a sensação de claustrofobia é atingida, deve-se ao enredo e não à realização. A música épico-manhosa (quando não é só bonitinho-manhosa) também não ajuda a dar vida a estas alegorias (a protagonista chama-se Eva, por amor de Deus!). O cabotinismo de alguns actores umas vezes irrita — Milo Ventimiglia anda um bocado perdido —, doutras tem muita graça: principalmente com Michael Biehn, um peixe que se dá bem nestas águas.
Há duas questões que apetece abordar a propósito deste The Divide que não têm directamente a ver com o filme:
1) Como na série B dos anos 50, o Terror é o (único?) espaço para certo tipo de análises à condição humana e um escape dos medos colectivos e individuais. É pena que Xavier Gens não saiba aproveitar o que tem em mãos (uma belíssima oportunidade de fazer um série B dos nossos tempos). Falta-lhe o génio de antepassados e mesmo de alguns contemporâneos.
2) Quando é que o Terror passou a ser o último reduto para sangue e tripas nos filmes predominantemente de acção (género em que The Divide também pode ser catalogado)? Desde quando é que o cinema de acção se transformou numa coisa limpinha e anónima para adolescente ver (em que até as feridas de John McClane não deitam sangue)? Não é por acaso que Michael Biehn aparece por aqui e já não nos gigantescos filmes de James Cameron que o “criou”. Não é por acaso que os The Expendables (Os Mercenários, 2010) e respectiva sequela tiveram tanto sucesso. Que é feito dos duros, monossilábicos e no-nonsense protagonistas que preenchiam o panorama de Hollywood nos anos 80 e até nos 90? Dos vilões psicóticos e sanguinários? Tenho saudades do Michael Ironside.
Sem Comentários
Gostei muito do texto. Talvez o problema seja meu, mas não consigo entender a razão dos filmes ditos de terror. Se forem de antecipação científica ainda aceito, o desconhecido será sempre uma icógnita. Que até poderá não ser terrífica.
Mas o terror não precisa de ser inventado e vendido como arte. Porque na génese do terror está o medo, o espírito de sobrevivência, a lei do mais forte. Esse terror é o medo de todos os dias, a desconfiança a insegurança e acima de tudo a miséria.
Lembro de filmes de medo, cito dois, mas há mais que não me ocorrem. O M do Fritz Lang ou as Vinhas da Ira do John Ford. Estes são filmes onde o medo dói, porque nasce na consciência das pessoas.
Os outros, bem ou mal feitos poucos ficarão na história. Toma-se um copo e o terror desaparece.
Não concordo. Aliás, o Terror é bastante subvalorizado, é sempre considerado um género menor, quando, muitas vezes, é o único em que se reflectem as preocupações e os medos da sociedade assim como os do indivíduo. Basta reparar como o sub-género Hoodie Horror antecipou os motins em Londres o ano passado ou como em muitos slashers não se fala de outra coisa que não do medo da sexualidade. Para não falar, é claro, do medo da morte e da dor física, que são mais ou menos exorcizados em todos os filmes de terror. Sob essa capa de menoridade, fala-se de coisas muito sérias. Até em filmes maus ou medianos. Se formos para os filmes bons, então, entramos noutro campeonato: o “The Shining” do Stanley Kubrick é tanto um obra-prima do Terror como do cinema.
[…] bem pouco tempo falava-se por aqui da forma como o pós-Apocalipse se ia lentamente vertendo em género. A julgar pela frequência com […]