Cheguei ao fim-de-semana, foram nove dias de filmes, mais de muitos (pelas minhas contas, entre curtas e longas foram cerca de 50) e o cansaço começa a abater-se, ainda que apenas ao de leve. As correrias, as 4 sessões diárias passam agora pelo arrastar-se de uma sala para outra vendo 2 ou 3 sessões se assim o horário obrigar. Por outro lado sentimos que nestes dois últimos dias que se guardou o melhor para o fim; é mais do que uma sensação, os prémios ontem divulgados vem confirmar esse estado de espírito: Jaurès (2011) de Vincent Dieutre e Skoonheid (Beauty, 2011) de Oliver Hermanus são de longe os melhores filmes das respectivas secções (ambos apresentados na sexta e à mesma hora, fazendo da sala 3, onde Jaurés passou, um quase deserto).
Jaurès é antes de ser queer, ou o raio que o parta, um filme estranhíssimo e depois uma dedicatória de amor. Dieutre viveu com um homem chamado Simon; não, minto, Vincent frequentou a casa de um amante chamado Simon durante cerca de um ano. Nunca lá passou os dias (nem sequer ao domingo), só as manhãs (em que comiam o pequeno almoço juntos) e as noites (em que jantavam e dormiam juntos). A casa era junto à estação de metro, Jaurès de seu nome. Tudo o que vemos foi filmado desse apartamento com vista para o canal, sempre da mesma janela. Nunca vemos Dieutre nem Simon, só os ouvimos atrás da câmara a comentarem o que o primeiro filma, ou a falarem de outra coisa qualquer. Por cima de tudo isto temos de novo Dieutre e a actriz Eva Truffaut num estúdio a falarem sobre as imagens e os sons. A relação já acabou, mas a sua memória e o carinho por ela gerada continuam intactos. Não me lembro de ver uma carta de amor tão brilhantemente filmada, uma ode àquele tempo feliz, um beijo no passado. Talvez só alguns dos realizadores da Nouvelle Vague, com Agnès Varda e Alain Cavalier à cabeça, seguidos de Boris Lehman e outros que conseguiram filmar o amor e a memória de forma igualmente cândida e consciente [Jacquot de Nantes (1991) é a mais bela dedicatória de amor àquele que está a partir, nunca a proximidade da morte terá sido filmada com tanto carinho e controlo]. Tenho que confessar que me apaixono muito facilmente por filmes assim, diarísticos. Mas aqui há algo mais que o diário; reparem na imagem que têm a cima. Que vêem? umas árvores, uma ponte, uns prédios, um metro a passar; certo. Olhem melhor para o metro; está desenhado, é uma animação. O que acontece em Jaurès é a infecção daquilo que supomos ser o real por elementos estranhos, o metro animado, um carro animado, uma pomba animada; como se a ‘realidade’ não chegasse para contar a história; ou melhor, como se não houvesse realidade já. Todo aquele amor já foi, agora só o podemos recuperar e qualquer ‘arqueologia da memória’ trás elementos estrangeiros àqueles que vivemos. Mesmo que essa memória seja uma câmara (que supostamente não esquece). Pois bem, Vincent Dieutre fá-la esquecer. Revolucionário? com certeza, se a cgtp tivesse sabido fazia a manifestação na sala 3 do São Jorge.
Mas se no piso de baixo fazia-se um tratado, no piso de cima comiam-se tratados ao pequeno almoço. Skoonheid é um filme na onda dos de Steve McQueen (o realizador), o mesmo controlo, a mesma atmosfera opressiva. As proximidades entre o filme de Oliver Hermanus e Shame (Vergonha, 2011) são muitas, no filme de McQueen vivíamos a vida de um homem com uma compulsão pelo sexo (um vício), aqui o nosso homem encara o sexo igualmente como um vício (e é vergonha e medo aquilo que ele sente a acima de tudo), um pecado. O extraordinário no filme é a compreensão (que o cinema de terror já tinha percebido há anos e que parece agora chegar ao drama) de que a tensão (sexual) se constrói através do plano subjectivo. O filme começa num lentíssimo zoom numa festa de casamento, o enquadramento vai se apertando mas não conseguimos ainda perceber quem é que está a ser o alvo da atenção, até que, finalmente o olhar se prende num homem (lindíssimo, beauty). O contra-campo explica-nos que tudo aquilo era o olhar de um homem mais velho (o protagonista). Esta estratégia concentra todo o desejo do homem; é através de planos assim (filmados de muito longe) que percebemos a sua obsessão (primeiro voyerista, depois mais concreta) e os seus dilemas (por ver tudo ao longe interpreta mal a vida do jovem, entende como sinais da sua homossexualidade aquilo que o não são; há também um trabalho sobre a elipse de forma criar expectativas contraditórias no espectador, nós também interpretamos erradamente a sexualidade do jovem). Há um plano que resume tudo o que disse: o homem trabalha numa fábrica de madeiras, uma tábua rugosa entra na máquina e sai do outro lado aparada e suave; aquele homem foi obrigado a passar por esse aparador, ficou pronto para a comunidade, casou e teve filhas, mas não era nada disso que ele queria, pior, passou a ter nojo daquilo que ele queria. Como em Shame o grande drama da personagem é o facto de não conseguir amar (por patologia ou por preconceito).
O festival continua em casa.
Desde o ano passado que o Queer Lisboa desenvolveu uma parceria com a plataforma online MUBI, onde vários dos filmes a serem exibidos no festival estão também disponíveis na dita plataforma e sem quaisquer custos (coisa que aconteceu durante o festival e continuará até ao final desta semana que agora se inicia). Podemos ver o documentário que esteve a secção competitiva The Table with the Dogs (Kathakali, 2011), podemos ver várias da curtas que estiveram em competição, incluindo algumas das que mais gostei, nomeadamente Mila Caos (2011), La Santa (2011), The Man That Got Away (2011), Blue Piscine (2011) e The Ducks’ Migartion (2011). Mas têm também a curta vencedora do prémio de melhor curta metragem deste ano, Längs Vägen (Along the Road, 2011) e a curta vencedora do prémio do público do ano passado, Eu não quero voltar sozinho (2010).
Prognósticos de fim de jogo.
A pergunta impõe-se agora mais ainda do que quando o festival começou: faz sentido haver festivais queer? No debate sobre o cinema queer em Portugal Nuno Galopim fez a mesma pergunta, a resposta foi positiva (por parte dos presentes); é preciso divulgar o cinema qualquer que ele seja e ainda mais este cuja temática afasta muita gente. Mas vistos os filmes incomoda perceber que o grosso dos títulos que foi importado dos festivais irmãos são (na generalidade) maus. Os bons filmes que podemos ver vieram de Cannes e de Berlim. Vejamos os vencedores, Keep the Lights On (2011) vencedor do prémio do júri tinha vencido o Teddy em Berlim, Skoonheid (menção honrosa no Queer Lisboa) tinha recebido a Queer Plam em Cannes (para o qual tinha sido seleccionado para a secção Un Certain Regard), Jaurès (vencedor do prémio para melhor documentário por terras lusas) venceu o prémio do júri dos Teddy Awards. Nas curtas, algumas das melhores que pude ver tinham sido selecção da quinzena dos realizadores (exemplo de Mila Caos ou La Santa). Ou seja, os ditos festivais generalistas já acolhem o cinema de temática LGBT e fazem-no com gosto, separam o trigo do joio. Aqui, isso não acontece, vários dos títulos (em particular os nacionais) eram completamente intragáveis.
Quanto à questão da divulgação perguntei ao João Rui Guerra da Mata se não se estaria a pregar aos convertidos (poderão ler a entrevista dentro de poucos dias), a resposta foi em forma de pergunta: quem são os convertidos? O que ele quis dizer foi, lá por o público ser maioritariamente gay e lésbico não quer dizer que não deva ver outros filmes que se calhar não estava à espera (filmes que retratem a comunidade LGBT de um forma não necessariamente positiva), que o faça pensar. O que me incomodou foi, por exemplo, ao ver Skoonheid sentir que era a única pessoa a bater palmas ao filme, enquanto que no insuportável retrato de James Dean toda a plateia vibrou de alegria e júbilo. Incomodou-me também que Jaurès tivesse menos de duas dúzias de espectadores e que Le Ciel en bataille (2011) tivesse menos de uma dúzia (dos quais metade seriam júris, convidados e imprensa, como eu). Não sei bem o que pensar; há uns meses Augusto M. Seabra espantava-se com o decréscimo de público da festa da música de Serralves (que é de entrada livre) e o aumento em festivais como o Rock in Rio, cujos bilhetes custam ‘horrores’. Eu também me espanto, por motivos diferentes, mas acima de tudo o que importa é que se veja filmes e que se pense com eles (e sobre eles) e se é preciso um evento com festas da espuma e passadeiras cor-de-rosa então que seja.