Inicia-se amanhã o ciclo CCB no CCB – Camilo Castelo Branco: As paixões juvenis e o Amor de Perdição que conta com uma vasta programação, que vai da literatura ao cinema, passando por mesas-redondas, conferências, debates, programas musicais, uma feira do livro e duas exposições. Proponho uma viagem em duas partes pelo livro e pelos filmes que sobre ele se fizeram.
Em 1862 esteve Camilo Castelo Branco preso exactamente na mesma prisão que um seu tio paterno, Simão Botelho, havia estado retido cerca de 60 anos antes. A história vinha correndo a família e estando a ocasião propícia (ajudada ainda por mais pelo facto de na prisão ter acesso aos documentos referentes ao dito parente) decidiu escrever a epopeia romântica do tio (“Escrevi o romance em 15 dias, os mais atormentados da minha vida. Tão horrorizada tenho deles memória, que nunca abrirei o Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima em edições futuras.” pedaço do prefácio da 2.ª edição de Amor de Perdição, retirado do livro que escreveu também atrás de barras, Memórias do Cárcere) como forma de escapar ao jugo prisional.
Antes, havia sido Camilo um autor de pouco reconhecimento, ou melhor, era-o mas não no tamanho que este livro lhe havia de dar. Havia escrito Onde está a felicidade? que de Alexandre Herculano tinha recebido elogiosas críticas. Mas o facto é que Camilo era mais conhecido pela sua vida boémia; frequentador de tudo o que era festa e local de bebida e conversa, a sua vida era propícia ao corte dos outros. Mas o corte afincou-se com o seu envolvimento com mulher casada, motivo que o levou à prisão (e a ela também) por esse crime que era o adultério. A senhora era Ana Plácido e ele por ela muito se enamorou, fugindo do marido e da polícia que este enviara no seu encalço andou por terras pequenas até se entregar. Acabaria por se casar com a senhora, a sua terceira mulher (abandonara as duas com filhos e tudo) e desta vez a força dela era maior que o seu desejo de festarola. Tornou-se o primeiro escritor profissional que esta terra já viu, escrevia em tudo o que mexia, revistas, jornais e em livro, e sobre todas as formas, conto, folhetim, romance, crónica.
Quanto ao livro que aqui me chama, por ele não caia especial simpatia do autor: “Este livro, cujo o êxito se me atolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. (…) Em honra e louvor das pessoas que estimaram o meu livro, confessarei agradavelmente que julguei mal delas.”. E o sucesso de tal obra foi coisa que não durou muito mais de 10 anos. Estando Camilo agarrado ao romantismo e sendo Amor de Perdição, um epíteto de tal género, natural será perceber que a chegada do realismo no final do século XIX, que vinha contrair a tendência lacrimal dos autores anteriores, jogasse a política da terra queimada. Escreveu Camilo Castelo Branco na última edição que pode supervisionar, a quinta: “O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticísmo moderno, é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e uma ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do romantismo” e continua “Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar as alcovas, a fim de que as senhoras as possam ler em salas, na presença de suas filhas e suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro em seu quarto de banho”. Mas aquilo que entristecia mais Camilo era perceber que os gostos dos leitores (e em particular das leitoras) se haviam mudado de tal maneira que aquilo que fazia chorar originalmente era agora motivo de risota. “Se por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XX, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.”.
A primeira adaptação cinematográfica de mais celebrada obra de Camilo foi ainda no tempo do mudo por Georges Pallu, com Amor de Perdição (1921). Esta não tive eu o prazer de ver e portanto sobre ela saltarei a bem de falar sobre o que sei (ou imagino saber). A seguinte foi a mais conhecida, ainda aos dias de hoje, Amor de Perdição (1943) por António Lopes Ribeiro. Produção da época pela mão da empresa Tobis Portuguesa que à data era também estúdio e que pelas mãos de uma série de realizadores: José Leitão de Barros, Jorge Brum de Canto, Arthur Duarte e o próprio Lopes Ribeiro (note-se que também Manoel de Oliveira foi accionista da dita empresa). As obras eram maioritariamente adapatações literárias, As Pupilas do Senhor Reitor (1935) da obra homónima de Júlio Dinis, O Primo Basílio (1959) de Eça de Queiroz, ou então as biografias de autores famosos, Camões (1946). Mas acima de tudo estavam as ditas comédias portuguesas, tão próprias do espírito do regime, das gentes prendadas e remediadas que subiam a escada social através do amor.
Assim sendo não será de estranhar que um muito bem sucedido livro, ainda para mais de uma história tão afastada de grandes intenções políticas, tomasse primazia nas adaptações da Tobis. O filme de Lopes Ribeiro persegue essa veia sentimentalista e eleva-a a um expoente que chega a alcançar o ridículo (como já Camilo havia percebido, quase 80 anos antes), veja-se a morte de João da Cruz – Mataram-me! Aliás, é na personagem de João da Cruz que se concentram todos os males do filme. A personagem escrita por Camilo é um homem do campo, ferrador de profissão, é tão duro como os materiais que manuseia todo o dia. No entanto, com vista a encaixar um actor que agradava ao público, foi António Silva que lhe deu corpo. Pois bem, tentou-se aligeirar o homem do campo que com os seus modos rudes, podia ser mal interpretado; passou de rude a senhor simpático e bonacheirão (a primeira vez que o vemos está ele a rir-se a cena da pancada nos aguadeiros, sendo que tal presença não está, nem por sombras, nas palavras de Camilo).
No início do filme, o narrador avisa-nos: “Seria vaidade registar aqui outro nome que não fosse o de Camilo Castelo Branco, tal como seria desacerto e ingratidão mudar, quer na essência, quer na compostura a história triste de Simão Botelho”. Tudo muito lindo, mas de todas as adaptações esta é aquela que de forma mais matreira se parece torcer para dar ao espectador uma ideia diferente daquela de Camilo. Veja por exemplo a cena em que João da Cruz mata os criados do de Castro Daire. Houve-se um grito na noite e o liteiro que acompanha Simão diz-lhe que João da Cruz está a fazer a sua justiça, ele lá sabe o o que faz. A cena no filme termina nesse ponto dramático com um fade para o negro, no entanto nas palavras de Camilo temos uma resposta de Simão que acusa de maldade o ferrador e se horroriza com tais modos de silenciamento. Parece que esse pedaço foi retirado propositadamente, que se pretende que haja no espectador uma aceitação por actos imorais destes, em nome de um ‘bem’ comum. Outros exemplos de corte e costura vão se repetindo, mas este é de todos os mais alarmante.
(Amanhã continua a viagem e passaremos pela obra de Manoel Oliveira e a de Mário Barroso)
Dia 22
Amor de Perdição (1921), de Georges Pallu
Banda Sonora ao Vivo Nicholas McNair
Pequeno Auditório do CCB às 21:00
Dia 23
Amor de Perdição (1943), de António Lopes Ribeiro
Pequeno Auditório do CCB às 21:00
Dia 24
Amor de Perdição (1978), de Manoel de Oliveira
Pequeno Auditório do CCB às 19:00
Dia 25
Um Amor de Perdição (2008), de Mário Barroso
Pequeno Auditório do CCB às 21:00