Num ano em que sofre importantes cortes ao seu apoio, a 10ª Edição do Doclisboa (18-28 Outubro) apresenta uma programação de resistência, de invulgar qualidade. São inúmeros os motivos de interesse que se expandem pela sua competição nacional e internacional, pela retrospectiva da belga Chantal Akerman, pelo incremento do apoio ao documentarismo português expresso na secção Verdes Anos, pelas mesas redondas sobre alguns temas fracturantes, quer da evolução do documentário, quer da actualidade política, terminando pela presença de alguns cineastas, críticos e professores importantes da sétima arte.
Com uma direcção tocada a quatro mãos (Cíntia Gil, Susana de Sousa Dias, Cinta Pelelá e Ana Jordão) o Doclisboa escolheu este ano outra vez integrar uma longa-metragem portuguesa na competição internacional. Se o ano passado coube a Gonçalo Tocha e a É na Terra Não é na Lua (filme que aliás venceu a competição), agora é A Última Vez que vi Macau da eterna dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, filme que foi distinguido no Festival de Cinema de Locarno com uma menção especial do júri e que agora tem honras de abertura do festival. A fazer-lhe companhia estão outras dez longas-metragens de várias origens com destaque para Babylon dos tunisinos Youssef Chebbi, Ismaël e Ala Eddine Slim (filme vencedor do prémio para melhor primeira obra no Festival Internacional de Marselha), Arraianos do espanhol Eloy Enciso Cachafeiro, sobre uma aldeia na floresta entre Galiza e Portugal (chama-se a atenção para a boa filiação com a curta-metragem A Raia, de tema semelhante, esta na competição nacional, do realizador Iván Castiñeiras Gallego) e claro, o mais recente filme do famoso documentarista chinês Wang Bing, San Zimei (Three Sisters). O filme, que desta vez se contém nos 153 minutos (lembro que em 2007 o prémio Universidades foi para o seu “épico” He Fengming que, em pouco mais de três horas, e três ou quatro planos, contava a odisseia da vida de Fengming, história que se confundia com a formação da China Moderna), acompanha a vida de três irmãs que vivem sozinhas numa casa de aldeia na região das montanhas de Yunan. Alguma curiosidade ainda para The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years Without Images do norte-americano radicado em Paris, Eric Baudelaire. O filme evoca o itinerário de três décadas de Beirute a Tokyo, no pós-Maio de 68, de um movimento de esquerda revolucionária contado através de dois dos seus protagonistas.
Quanto aos filmes portugueses, eles são 68, entre longas e curtas-metragens, primeiras obras e autores conceituados. A meu ver são grandes as expectativas para Terra de Ninguém sobre a vida de um mercenário português, filme que Salomé Lamas assina depois da edição do ano passado nos ter mostrado Golden Dawn, que esteve na competição nacional de curtas. Outro destaque vai para o traçar da geometria e vivências no bairro da Bela Vista na curta homónima da dupla Filipa Reis e João Miller Guerra que estrearam na semana passada nas salas portuguesas Orquestra Geração e que o ano passado venceram a sua competição com Li Ké Terra. Ainda aguardo com interesse O Regresso de Júlio Alves que este ano apresentou no IndieLisboa A Casa. Este novo filme debruça-se sobre a vida dos habitantes de uma aldeia portuguesa chamada Mega Fundeira. Experiência interessante será o novo filme do músico e cineasta Tiago Pereira (Onze Burros Caem no Estômago Vazio, 2006) que será apresentado na secção Heart Beat. Outra vez um título sugestivo, Não me importava de morrer se houvesse Guitarras no Céu, outra vez sobre música – o baile típico dos Açores, a Chamarrita – mas desta feita financiado em regime de crowdfunding. Há ainda os nomes seguros: o bielorrusso Sergei Lonitza [Schastye moe (A Minha Alegria, 2010)] que veio filmar a Portugal, mais concretamente ao norte, na aldeia de Santo António de Mixões da Serra. O filme chama-se O Milagre de Santo António e está na competição internacional de curtas; o novo filme de Edgar Pêra Visões de Madredeus e a oportunidade de rever Esta é a Minha Casa e Viagem à Expo que João Pedro Rodrigues fez nos anos 90 e que agora serão lançados em DVD. E depois os “tiros no escuro”: Cativeiro de André Gil Mata (uma reflexão sobre a condição de confinamento no tempo e no espaço) e o Fado da Bia de Diogo Varela Silva (sobre a fadista Beatriz da Conceição).
A fechar o capítulo dos portugueses não esquecer duas sessões especiais. Uma no dia 26 de Outubro às 21:45 no S. Jorge, de homenagem ao curtas de Vila do Conde, onde serão exibidos A Rua da Estrada de Graça Castanheiro, Cinzas, Ensaio sobre o Fogo de Pedro Flores e O Canto do Rocha de Helvécio Maris Jr., tudo filmes produzidos pelo festival. A outra sessão especial, especialíssima, decorre no mesmo dia, umas horas antes, às 14:45 no S. Jorge. Será ocasião de homenagear Fernando Lopes (que nos deixou em Maio deste ano), e onde veremos três obras pouco conhecidas mas importantes para a evolução do documentário português: As Pedras e o Tempo-Évora, Cinema e Olhar/Ver – Gérard, Fotógrafo.
Sobre Chantal Akerman, a cineasta em destaque nesta edição, nome importante do cinema moderno convém que se diga que todo o seu cinema é merecedor só por si de destaque. E todo ele será exibido, começando no festival e prolongando-se por Novembro na Cinemateca Portuguesa. Contudo, se fizermos esse exercício de nos atermos a três propostas, salientamos: Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, a sua magna opus que ajudou a estilhaçar as convenções ligadas a uma imagem estereotipada da feminilidade mas também da uma certa duração dos planos e integralidade das acções, News From Home, obra que juntando a narração de cartas enviadas pela sua mãe a imagens de Nova Iorque (aquando da sua estadia e formação aí durante a juventude) trabalha esse mecanismo de alargamento e inversão das convenções de um espaço (físico e emocional) e, finalmente, D’Est (From the East) um filme que, numa impressionante passagem por lugares e pessoas (olhares) na Polónia, Rússia, Alemanha de Leste (países que, após a queda do muro de Berlim, parecem “esperar” pacientemente um futuro que os envolva) é um importante momento na carreira de Akerman, não só por sintetizar alguns nós temáticos e formais do seu olhar documental, os travellings por exemplo, mas também porque serve de impulso aos outros grandes documentários que fez posteriormente: Sud (1999), De l’autre côté (2002) e Là-bas (2006).
A secção Riscos, comissariada por Augusto M. Seabra, é dedicada à memória de três cineastas que este ano deixaram o mundo do cinema mais pobre: Chris Marker, Stephen Dwoskin e Marcel Hanoun. Do segundo, a não perder Age is…, a sua última obra que aborda o envelhecimento, os seus traços geográficos e intelectuais, um pouco como em 1997 tinha feito com a natureza da dor (Pain is…). Este é o espaço que também nos permite manter a par das últimos filmes de Apichatpong Weerasethakul (Ashes e Mekong Hotel), Jay Rosenblatt (Inquire Within), João Pedro Rodrigues (Manhã de Santo António) ou Ben Rivers (Two Years at Sea e na competição curtas internacionais The Creation as we saw it). Para estimular o músculo da cinefilia aconselho ainda Free Radicals: a History of Experimental Film de Pip Chodorov e em prolongamento de uma estranheza experimental Anders, Molussien de Nicholas Rey, um filme em 16 mm que é a adaptação de um livro de filosofia do alemão Günther Anders que o cineasta nunca leu… um romance “Die Molussische Katakombe” escrito nos anos 30 sob a forma de diálogo entre dois cidadãos de um estado fascista imaginário, Molussia.
Além da secção Retrospectiva United We Stand, Divided We Fall, comissariada por Federico Rossin, que vai mostrar filmes feitos por colectivos radicais dos anos 60 e 80, a actualidade política filtrada pelos filmes está presente sob diversas vozes: ainda a herança do 11 de Setembro (Low Definition Control Malfunctions #0), a moldagem de uma identidade colectiva italiana pelo fenómeno da televisão (Um Mito Antropologico Televisivo), a crise grega (Demokratia, o Dromos tou Stavrou, Thanassis / A Greek DOGumentary, Cheap Tickets), as convulsões libias (Libya Hurra), sírias (The Suffering Grasses: when Elephants fight, it is the Grass that suffers) ou o desastre nuclear em Fukushima [Nuukuria Neishon (Nuclear Nation)] entre outros.
Mas porque nem só de filmes vivem os festivais mas também da capacidade de criar espaço para os pensar (a eles e às suas implicações) é preciso salientar quatro actividades. A primeira, que surge como prolongamento natural da secção Passagens (que vai pôr em diálogo algumas instalações de Chantal Akerman e Pedro Costa) é um colóquio internacional que decorre de 25 a 27, sempre às 10:00 no Pequeno Auditório. Vai contar com a co-organização da Universidade de Lisboa e a Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne e a ideia será discutir precisamente como se opera essa passagem da intenção documental tradicional à miscenização com os problemas e práticas da instalação e da arte contemporânea. O segundo evento é uns dias antes, a 22, às 14:30 na Culturgest: uma mesa redonda que, na sequência dos anúncios de privatização da RTP1 e de extinção da 2, irá discutir o futuro do serviço público de televisão. Discussão imperiosa no momento em que o próprio festival reforça os mecanismos de apoio pela visibilidade aos jovens documentaristas portugueses pela abertura da secção Verdes Anos que mostrará filmes produzidos no contexto de escolas de vídeo, cinema, audiovisuais e comunicação. O terceiro evento, dia 26 às 15:00, será uma conversa que relaciona o cinema e as crises contemporâneas do capitalismo financeiro, do euro e dos países europeus do Sul. Se por um lado a realidade reclama como nunca do documentário que mostre e reflicta os conflitos sociais, as revoluções (as feitas e as emergentes), nos países onde esse turbilhão é mais visível [Portugal, Grécia, Espanha mas também Roménia ou Hungria (aqui há que espreitar Magyarország 2011, uma colaboração colectiva de vários cineastas húngaros entre os quais Jancsó, Pálfi e Szábo feita como alarm call para os problemas de suporte do cinema magiar], por outro lado, os mecanismos de apoio ao cinema fragilizam-se. Por fim, a 23, às 10:30 no Grande Auditório da Culturgest, o cineasta romeno Andrei Ujica, presidente do júri da secção internacional e autor de Autobiografia lui Nicolae Ceausescu (A Autobiografia de Nicolae Ceausescu, 2010) dará uma masterclass.
E termino com a referência ao facto desta edição do festival nos dar também a oportunidade única de nos cruzar com gente como a importante cineasta iraniana Samira Makhmalbaf [júri da competição portuguesa; nota: um dos seus melhores filmes Sib (A Maçã, 1998) passa dia 23 às 17:00 e dia 28 às 16:15]; os famosos críticos e académicos Nicole Brenez e Adrian Martin (júris da competição internacional) e o realizador cambodjano Rithy Pahn (júri da secção Investigações, que também mostra o seu novo filme Duch, le Maître des Forges de L’enfer, sobre um dos principais dirigentes dos Khmers vermelhos no Cambodja).
Como se pode ver, motivos de interesse cinéfilo não vão faltar nos próximos dez dias. O problema vai ser mesmo escolher.