Com três anos de atraso (e mais de dois anos após a morte do realizador francês), estreia em Portugal o último filme de Claude Chabrol. Já lá diz o ditado que mais vale tarde do que nunca. Ditado, esse, que perante uma obra tão extraordinária como Bellamy (2009) ainda tem mais razão. Quem enjeitar esta oportunidade (para mais quando, a dado ponto, pareceu tão improvável), não sabe o que perde (e, se souber, não tem perdão).
Apesar de ser um último filme de um autor consagrado, Bellamy, até porque Chabrol provavelmente não saberia que iria morrer dentro de pouco tempo, não tem as marcas do que se costuma chamar filme-testamento. Aliás, o espectador terá muita dificuldade em vê-lo assim, tal a vitalidade e o prazer de filmar que todo o filme respira. Bellamy é isso mesmo (passe a expressão): um filme cheio de vida. O que é tanto mais surpreendente quanto os filmes anteriores de Chabrol — por exemplo, La fille coupée en deux (A Rapariga Cortada em Dois, 2007) — denunciavam algum cansaço, um remastigar de temas e situações. Não é que Chabrol negue a mortalidade ou que ela não esteja presente neste filme — há duas mortes, daqueles que (se) perderam no jogo da vida —, mas é apresentada como mais um facto da existência; o melhor motivo para os que têm essa sorte usufruírem em pleno o seu tempo na Terra.
E a sorte (o azar, o hasard, o acaso) é um dos temas-chave de Bellamy: Gérard Depardieu (no melhor papel em muitos anos), o encantador comissário que dá nome ao filme, de férias na província, bem casado, bem amado, suficientemente enfastiado (contente) para se meter num mistério quando deveria estar a viajar (as palavras cruzadas do início: bonheur e voyage), é um tipo sortudo. O mesmo não se pode dizer do irmão Jacques, que o vem visitar: bêbado, jogador, triste, zangado, ressabiado. Tal como a estranha personagem tripartida interpretada por Jacques Gamblin (ou melhor, uma delas, o sem-abrigo), parece amaldiçoado. E, no entanto, teve as mesmas oportunidades que o irmão. Será que a diferença reside somente no facto de Bellamy ter a mulher para o salvar do abismo (bem literalmente)? Mesmo que, antes e depois, duvide dela e da própria felicidade, quando olha e vê o mundo tão feio, recheado de figuras torpes. É notável como Chabrol instila essa dúvida e nunca a resolve plenamente — à personagem e ao espectador é reservado esse espaço, que só pode ser preenchido pela fé (ou deixado vazio).
Sob a capa de um divertissement, com a leveza de um romance policial (magnífica aquela piada das prateleiras que não precisam ser muito fortes para aguentar com os Vampiros lá do sítio), com um sentido lúdico maravilhoso (o advogado de defesa a cantar George Brassens nas alegações finais), Chabrol parece querer escavar o significado da vida, indo a profundidades quase filosóficas. Que consiga misturar (integrar) coisas tão diversas, que tenha produzido este admirável oximoro é revelador de uma mestria de que só os muito sábios são capazes (e já se me acabam os adjectivos, todos merecidíssimos).
Bellamy é um filme tão bonito que nem precisa esconder a fealdade do mundo. É uma despedida em beleza de um grande cineasta — o último plano, sobre o horizonte e aquele mar azulíssimo, é o único sinal de que Chabrol “sabia” que esta seria a última vez. Até sempre, Claude.
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Claude Chabrol foi um realizador com uma enorme sensibilidade mas que ficou esquecido no tempo. Terá o filme sido a sua carta de despedida?