Basta dar uma olhadela (e nem precisa ser exaustiva, chegam os últimos dez anos) para perceber que normalmente a escolha do Urso de Ouro em Berlim procura distinguir objectos “importantes” que, além do filme em si, digam qualquer coisa ao mundo, do género “nós estamos atentos e isto é um sinal”. Basta ver os prémios para o péssimo Tropa de Elite em 2008, a Tuya de hun shi (Tuya’s Marriage) em 2007, a Grbavica (Filha da Guerra) em 2006 ou a Bloody Sunday (O Domingo Sangrento, 2002), e fico por aqui (penso que se percebe a ideia). Se a isto juntarmos o facto de quer Vittorio, quer Paolo Taviani estarem já na casa dos oitenta e ser o momento de uma homenagem de carreira, ficamos com argumentos mais do que suficientes para partir com alguma desconfiança para o vencedor deste ano do galardão máximo no festival alemão, Cesare deve morire (César Deve Morrer, 2012).
Mas há que louvar o ânimo destes irmãos que, numa fase em que poderiam reconfortar-se com uma noção de carreira feita [os Taviani têm alguns títulos importantes no cinema italiano dos anos 70 e 80, a começar por Padre Padrone, 1977) La notte di San Lorenzo (A noite de São Lourenço, 1982) ou Kaos (1984)], se predispuseram a pensar em filmar qualquer coisa “diferente”. Neste caso, a inovação não está tanto na decisão do trabalho sobre um grande autor como William Shakespeare e a peça “Júlio César” (lembramos que é um hábito no cinema dos Taviani debruçar-se sobre grandes nomes, entre eles, Tolstói, Dumas ou Pirandello), nem sequer no facto de atribuir à peça uma dimensão política inusitada. Por exemplo, quando Orson Welles formou a Mercury Theatre no início da carreira adaptou a peça, quatro anos antes de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), com os protagonistas a vestir uniformes a lembrar as vestes fascistas e nazis. Obviamente que a peça de Shakespeare dá-se a essas extravasamentos sobre a natureza do poder, aliás, este filme não escapa a isso.
Mas a grande razão pela qual é preciso tirar o chapéu a este Cesare é que ele é todo feito entre universos distintos que se tocam, se prolongam, não para achar um meio termo mas para trabalhar essa mesma passagem: fazer um documentário e ter-se nas mãos uma poderosa ficção, começar no teatro e acabar no cinema, partir enclausurado e terminar livre. No fundo é só de uma passagem que se fala: do fechado ao aberto. Assim, a partir de um olhar documental, que segue os ensaios e a peça levada à cena pelos prisioneiros de uma prisão de segurança máxima em Roma, os irmãos Taviani têm muito interesse em saber como afecta o teatro (e a arte) enquanto condição libertadora no impacto do confinamento em que aqueles homens se encontram. “Libero Dentro” é o que pode resumir a experiência dos prisioneiros que no final do filme, depois das palmas, do sucesso, são de novos encerrados nas suas celas, mas é também o nome do livro que o actor que faz de César escreveu sobre essa experiência.
Mas essa “libertação” vai mais longe e percebe que uma peça de teatro pode descolar da sua “agoridade” mesmo prescindindo das imagens: os efeitos sonoros como as palmas, os relâmpagos, a construção sonora da tensão, apagam o espaço da prisão sem que tenhamos de ver algo para lá dos seus muros. E esse é só o princípio de “caminho” em direcção ao cinema, um estilo que junta os espaços pela montagem e que privilegia o preto e branco contrastado e nele, os rostos marcados. E finalmente a ficção não é só a do teatro, da conspiração contra César. É que numa peça em que não há vilões (nem Cássio, nem Brutus o são), a representação por parte dos prisioneiros, actores e autores, os vilões “oficiais”, desperta a ironia da reflexão sobre o poder, a justiça, a traição por parte dos sem-poder, dos “injustiçados”, dos “traídos”. Mas também permite ver na conspiração romana algo de motim prisional e na assistência ao discurso de Brutus ou aos ensaios na cela (fazer dela o palco), algo que redimensiona Cesare enquanto documentário prisional on the side.
Numa carreira que por razões óbvias se aproxima do seu terminus é revigorante ver os irmãos Taviani vencer o Urso de Ouro com tão poderoso antídoto contra o aprisionamento. Há por aqui um arejamento difícil de compreender mas que não passa pelo espírito. Antes pela emoção de uma fala, a interacção entre o homem e o actor, entre o assassínio e o sacrifício.