Algo de verdadeiramente estranho se passa no cinema português. Estamos, neste momento, a atravessar um dos momentos mais memoráveis de sempre, somos os novos romenos do cinema europeu. Toda a gente anda com interesse pelo que por cá se faz; são retrospectivas, selecções para secções competitivas, prémios, corridas aos oscars e tudo mais. E no entanto, há mais de um ano que o Instituto do Cinema e do Audiovisual não atribui o financiamento (de filmes que já venceram os concursos em 2010), nem abre concursos desde então.
Prometeu-se que saindo a nova lei do cinema, retomar-se-ia o funcionamento do dito instituto. A lei já tem quase um mês e nada. Também não ajuda a recente notícia (já confirmada pelo primeiro-ministro) que o secretário de estado da Cultura (Francisco José Viegas) se demitira devido a problemas de saúde. De qualquer maneira, toda esta situação soa a desprezo pelo que os cineastas portugueses vêm fazendo; o seu trabalho é como o de qualquer pessoa e sem financiamento não podem ganhar o suficiente para se manterem e sustentarem suas famílias ou a si mesmos. Vários são os testemunhos de realizadores e a realizadoras (mas com certeza a coisa se passa com outros profissionais do cinema e da cultura em geral – basta lembrar a manifestação dos artistas há poucas semanas) que tiveram e têm que pedir ajuda dos pais ou de amigos porque não conseguem suportar-se.
Como poderá isto ser? O cinema português é simultaneamente o mais interessante aos olhares do mundo e por outro lado é o menos interessante ao olhar dos seus dirigentes (e onde os seus trabalhadores passam pior e com mais dificuldades).
Isto pode ser porque toda a política do financiamento do cinema português (ainda que estrangulada há mais de dez anos e envolvendo casos de simples trafulhice como foi o do FICA) indicava um caminho onde o autor tinha primazia. Não é o mercado nem a industria, é um júri (e sobre os júris já várias vezes se falou e escreveu) que decide das potencialidades artísticas de uma obra. Se isto pode perpetuar o apoio sempre aos mesmo, a verdade é que em anos recentes (e este é o ano em que isso mais se nota) são cada vez mais as novas vozes que se fazem ouvir.
Na edição deste ano do Indie Lisboa surgiu uma nova secção, Novíssimos, sendo justificada pela organização: “neste ano especial, não só aumentámos o número de obras nacionais a concurso, como vamos fazer uma sessão especial intitulada ‘Novíssimos’ que pretende estimular ainda mais a existência de novos autores com a exibição de primeiros filmes e de filmes de escola.”No Doc Lisboa, que termina hoje, surgiu também uma nova secção, Verdes Anos, com vista a responder ao mesmo afluxo de obras (desta feita documentais) que a organização recebeu; filmes maioritariamente de recém formados realizadores. A par disto podemos destacar a já velhinha secção Take One! do festival de curtas de Vila do Conde que vem fazendo esta mesma competição escolar, e por onde vários dos realizadores que agora se consagram passaram e venceram.
Como poderá trabalhar esta geração de artistas que aparece agora cheia de vontade de fazer novo, quando todo o meio social e político parece negar-lhes qualquer possibilidade de sustento? A verdade é que não sei responder, mas temo saber a resposta.
A par de tudo isto, uma série de felizes coincidências gera uma tempestade perfeita: por um lado Guimarães Capital Europeia da Cultura financia dezenas de obras, por outro, a propósito dos 20 anos do Festival de Curtas de Vila do Conde inaugura-se o Estaleiro que este anos produzirá um total de 12 obras com realizadores portuguesas e 4 com estrangeiros e do outro lado do oceano está o Brasil e o Ano do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil, com partilhas de tudo entre eles, nomeadamente o cinema e a selecção fortíssima da Mostra de Cinema de São Paulo que inclui dezenas de filmes nacionais. [Mas também podíamos referir a recepção em Locarno de vários filmes portugueses assim como em Toronto ou agora a retrospectiva a Manuel Mozos que decorre na Viennale, ou a selecção para o festival do American Film Institute de Tabu (2012) e Sangue do Meu Sangue (2011)]
Mas tomemos atenção aos dois primeiros eventos.
Em Guimarães este ano, a área do cinema foi comissariada por João Lopes e Rodrigo Areias. Entre os vários projectos está um que visa o estabelecimento de um local de produção de cinema com o investimento em material e capital humano para produções futuras (“Criação de uma Plataforma de Produção Audiovisual (…) deixando como legado as bases técnicas e humanas para futuros empreendimentos cinematográficos.”). Através desta mesma plataforma vão sair ao longo deste ano e do próximo vários filmes, entre eles podemos referir 4 longas colectivas: Centro Histórico (Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Aki Kaurismaki e Victor Erice) que foi recentemente estreado no Festival de Roma, Guimarães Transversal (Gabriel Abrantes, Marcos Barbosa, Paulo Abreu), Histórias de Guimarães (Tiago Pereira, João Nicolau e João Botelho) sendo que a curta de João Nicolau esteve no festival de Locarno e um projecto de curtas em 3D (Jean-Luc Godard, Peter Greenway, Edgar Pêra). A par destes há também um documentário sobre Novais Teixeira pela mão de Margarida Gil, O Fantasma de Novais, outro sobre Martins Sarmento realizado por Jorge Campos e um terceiro sobre Fernando Távora pela mão de Rodrigo Areias. E depois há também uma série de curtas metragens soltas (quer de ficção, quer não) de Bruno de Almeida, António Ferreira, João Canijo, Rui Simões, João Salavisa e João Pedro Rodrigues.
Com o Estaleiro os organizadores do decano festival pretenderam criar um espaço onde as várias artes pudessem comunicar-se (“O Estaleiro é um projecto de formação e programação cultural (que cruzam áreas tão diversas como o cinema, a música e as artes visuais) a decorrer na cidade de Vila do Conde e que está dividido em quatro programas: ANIMAR, CAMPUS, CINEMA EXPANDIDO e CONCERTOS.”) e assim produzirão 12 curtas de realizadores nacionais (onde a equipa técnica é na maioria dos casos composta por estudantes de cinema) sendo que até ao momento já tiveram rodagem as curtas de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, Gonçalo Tocha, Pedro Flores, Luís Alves de Matos, Graça Castanheira e João Canijo (sendo que a curta deste último virará longa e terá estreia comercial). Mas também na comemoração dos 20 anos do festival, convidaram 4 realizadores estrangeiros (já familiarizados com o festival) a filmaram um curta em Vila do Conde ou perto, daqui surgiu o novo filme de Sergei Loznitsa, Helvécio Marins Jr., Yan Gonzalez e Thom Anderson (cujo filme, Reconversão, o João Lameira viu e escreveu na sua cobertura do festival).
Na sessão do Doc Lisboa onde Reconversão foi exibido, um dos organizadores do festival de curtas afirmou que embora o sucesso da vertente de produção do festival fosse inegável e uma feliz surpresa, esta não é nem poderá ser uma alternativa ao sistema que vem vigorado. Aliás, nenhum destes eventos pode substituir-se à participação financeira do ICA. E aqui é que interessa demorar o olhar: sem financiamento não há cinema em Portugal, ou pelo menos, não há cinema capaz de continuar a ser reconhecido no estrangeiro como vem acontecendo. Este ano dois dos casos mais curiosos na nossa cinematografia foram dois filmes produzidos sem qualquer subsídios [Morangos com Açúcar – O filme (2012) e Balas e Bolinhos – O Último Capítulo (2012)], no entanto não será surpresa se nenhum destes filmes tiver um espectador que seja fora de portas. Ao longo dos anos este foi sempre um dos objectivos dos nossos filmes, por isso, talvez se compreenda o desprezo pelo cinema nacional pela maioria dos portugueses. Mas sem financiamento nem para nós nem para o outros.
Sente-se portanto um misto de estados de alma, por um lado nunca o cinema português esteve tão presente nas bocas do mundo, por outro, nunca esteve tão mal dentro de portas. Parece que uma nova geração está agora a marcar a sua presença, a mostrar a sua garra e a conquistar o seu espaço, não terá um futuro risonho. A não ser que a situação se inverta a nova geração de cineastas (e as que já estão estabelecidas) ficarão como a pescada.