Tenho por hábito seguir sobretudo as competições quando estou num festival. Agora que penso nisso, a principal razão é porque são filmes que estão, em muitos casos, numa espécie de prova de fogo: ou alguém repara neles ou passam muitas vezes ao esquecimento (isto não se aplica tanto aos festivais “gigantes” claro).
Desta vez, tentei abandonar isso e vou respigando por aí filmes das várias secções. Também por isso dei comigo na secção que apresentava L’homme à la valise (1983) e Le déménagement (1993) de Chantal Akerman. E estes dois filmes, ambos feitos para a televisão e vistos hoje como intervalos entre as suas grandes obras, permitem-me apaziguar uma dúvida. Li uma vez que a realizadora identificava duas grandes influências na sua obra: os experimentais, dizia ela, deram-lhe o sentido de abertura, a liberdade; e, falando da importância de Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965), puxava Godard e a nouvelle vague como responsáveis por lhe terem dado o seu ânimo. Ora, a questão para mim era: como identificar o ânimo de um cineasta? Ele não está necessariamente no seu estilo mas no impulso de alma (anima) que o guia nas decisões de mise-en-scène, a criação dos ambientes, etc. E baseando-nos nisto parece que nos vemos encerrados no problema de ter de extrair dos índices de visibilidade o que é invisível em Chantal. E assim sendo, tirando a luta punk com a cozinha e seus rituais da personagem principal na sua primeira curta-metragem, Saute ma Ville (1968), essa anima parecia-me ser muito anti-boulevard, anti-deambulação romântica, no fundo anti-nouvelle vague. Mas e então? Quer dizer, estes dois filmes não ajudam a reequacionar essa “neurose” de Akerman na relação com os interiores como espaços de segurança, onde o pensamento surge como roda viva. Mas há neles uma imagem idílica de felicidade. Em Le déménagement, o actor Samy Frey acabou de mudar-se para um novo apartamento e depois de o medir, num monólogo teatral que dura todo o filme (são trinta e poucos minutos, era um episódio de televisão para a série Monologues) constrói para nós a sua felicidade petrificada (um pouco como o Pigmaleão de Ovídio), o momento do passado em que havia outro apartamento e este estava cheio de mulheres, três para ser mais preciso. E estava apaixonado por todas [outra desmistificação: para quem pensa que Akerman faz um cinema de mulheres é preciso conferir este ou o último plano de La folie Almayer (A Loucura de Almayer, 2011), o seu último filme, que estreia esta semana em Portugal]. Em L’homme à la valise, filme feito dez anos antes para a TV com o apoio do INA (Institut National de L’Audiovisuel), a ideia de felicidade é mais corriqueira: que o seu apartamento se veja livre da presença masculina (um amigo enorme em estatura que Chantal, que protagoniza o filme, não consegue expulsar da sua própria casa). O homem da “valise” é uma presença incomodativa (surge cortado pelo peito na maioria dos seus planos e os seus sapatos fazem muito barulho no corredor) e Chantal pensa em como pode organizar-se nas suas rotinas diárias para nunca ter de o ver. Se o tom do filme é cómico (e outra vez podemos adiantar o ânimo nouvelle vague por aí), o espaço da sua casa (a cozinha, a casa-de-banho, o corredor) ditam que a exploração da premissa desemboque (outra vez) numa obsessão sombria, neurótica. Fica mais um pormenor importante, que Chantal quer o seu espaço desimpedido para trabalhar. E é com ela a teclar furiosamente numa máquina de escrever, de costas, que o filme termina. Que a solução de todos os males seja o labor.
A transformação da comédia em obsessão de L’homme à la valise, começa quando a belga decide instalar uma câmara à janela ligado a um monitor para que possa ver a partir de dentro quando é que o seu companheiro de quarto cruza a rua para reentrar em casa. Essa imagem, repetimos, de 83, faz um raccord interessante com Low Definition Control Malfunctions #0 de 2011. Claro que o raccord oficial a ser feito não é desses quase trinta anos de diferença que separam as duas imagens, mas sim com a (re)evocação do problema da segurança e do controlo que o reboot dos sistemas de segurança e vigilância fizeram em consequência do 11 de Setembro e do retórico we against them, que apontava as câmaras a esses seres esquivos a que demos convenientemente o nome de terroristas. O documentário do austríaco Michael Palm debruça-se precisamente sobre as questões da ética das imagens das câmaras de vigilância, a redefinição do conceito de espaço público, o prolongamento arquivista do mundo pelo cinema (fazer um arquivo de todas as imagens e criar um “worldfilm”, como se diz a dado momento) mas sobretudo o prolongamento do controlo preventivo a partir do sistema panóptico de Bentham (Orwell, Foucault e Deleuze, entre outros, tinham tirado já ilações teóricas sobre isso mas as acções ainda não tinham acompanhado).
O que é curioso é que há uma frieza “germânica” na relação entre as imagens que são exclusivamente de câmaras de vigilância, de ultra-sons, de ressonâncias magnéticas, de detectores de movimento com a opinião dos especialistas que vão trilhando um percurso teórico. À primeira vista parece ser um caminho árduo, maçudo, que usa a imagem como ilustração do logos. Mas a certa altura alguém diz, entre pessoas a passear na rua, em parques, a sair de edifícios: o que ver na imagem? É que há um modelo estabilizado pela cultura para o que vemos e não vemos, deixando “invisível” esse excesso informativo que o fotográfico traz consigo. A questão é que, tendo sido sempre o cinema uma máquina de controlo social, esse excesso jazia subjugado muitas vezes em detrimento da arte. As imagens ao serem inseridas no filme de Palm espelham esse limiar em que elas próprias se encontram: as imagens perdem a marca estética (perdem, porque são produzidas sem essa intenção) e convertem-se em interface, em bits, em estatística de controlo. Como se a construção destas imagens alterasse a desconfiança platónica face às mesmas na relação com o mundo, mas prolongasse o platonismo nessa ânsia de catalogar o presente e manipular a latência das imagens para um futuro perfeito: sem doenças, sem crimes, sem hasard. Há algo de profético neste projecto, como se a eliminação do erro escrevesse o futuro com a luz. Por isso, talvez não seja possível a Low Definition Control Malfunctions #0 construir-se sem ser contra um modelo interno que temos de documentário e de cinema. Mas como se lê na Apologia de Sócrates de Platão (ou mais à mão nas paredes do nosso metro): “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Um bom exemplo de hermeneuta histórico, e mais particularmente dos efeitos do massacre levado a cabo pelos Khmer Vermelhos no Cambodja, é o cineasta Rithy Pahn. Não sendo conhecedor da sua obra (nem sequer daquela que alguns consideram o seu melhor filme S-21: The Khmer Rouge Killing Machine de 2003) fico impressionado por este Duch, le maître des forges de l’enfer (Duch, Master of the Forges of Hell, 2011). Sobretudo porque o sentido de urgência que existe no cambodjano ao filmar Kaing Guek Eav, mais conhecido por Duch, responsável pela prisão M3 e mais tarde pelo mortífero centro de interrogações e execuções S21 nunca põe em causa o espectador. Ao contrário do israelita Ra’anan Alexandrowicz [Shilton Ha’Chok (The Law in These Parts, 2011)] aquele apaga os seus traços no ecrã e deixa toda a performatividade à explicação, memória, remorso do próprio Duch. É a sua voz, tão transparente e oposta ao seu olhar aguado, que quase funciona como trilha sonora independente. Esta instaura um ritmo dolente e cândido (heresia) na evocação das torturas e da justificação dos seus actos. Por isso, há toda uma viagem que fazemos, um arco emocional que ora o coloca a emitir justificações e raciocínios plausíveis (note-se que Duch é um intelectual que cita a Bíblia ou o historicismo do historiador Savigny), ora usa expressões como “destruir pessoas” ou a frase do regime “mais vale matar um inocente do que deixar um inimigo vivo”. Por vezes ainda matematiza as suas mortes colocando o seu arrependimento em risco ante a câmara. Em planos frontais de Duch, sentado à secretaria por várias vezes coloca a sua mão esquerda sobre a mesa. E vemos sempre três dedos. Uma sensação de estranheza, mas pode ser da posição da mão, penso. Não estava certo que lhe faltasse nada. Mais tarde quando este examina fotografias e documentos finalmente vemos que lhe falta um dedo. Quando Deus criou Adão estendeu-lhe a mão e é o indicador “divino” que o toca. É esse o dedo que falta a Duch. Mas é nessas mãos, despojadas sabe lá por que causa do dedo criador, que Pahn decide acabar o filme: postas sobre a Bíblia num novo projecto de cristianismo que Duch abraça no cárcere que será a sua casa até ao final dos seus dias. Quem ainda não viu vale a pena espreitá-lo. Passa ainda dia 27 às 21:15 na Culturgest.
As mãos são também as paisagens cheias de sulcos e linhas preferidas de Stephen Dwoskin para o seu The Age is… (2012) Elas são um indicador da idade e que funcionam como índice da sua reflexão. Totalmente sem palavras e com música original de Alejandro Balanescu, o filme parece um daqueles poemas em que o seu autor faz das tripas coração para rimar. Tem desde a sua primeira imagem (e até à última) um impositivo tom poético, completado pelo constante ralenti das imagens. Parece uma visão um pouco anacrónica do tema, que nunca chega realmente a afirmar grande coisa e que não adianta absolutamente nada ao que já conhecíamos do cineasta. E não é porque as suas imagens não o permitam – idosos captados nessa nova posição no mundo, a andar, a fazer ginástica, a comer, a sorrir ou simplesmente a olhar. Parece que The Age is… nunca consegue abandonar uma forma de esboço, não sabendo muito bem como lidar com a herança simbólica de certas imagens levando-nos sempre para paragens e estados de alma reconhecíveis e fetichistas: as rugas, a pele, os ponteiros do relógio, a lentidão. Dwoskin tem no entanto o mérito de retardar um pouco a nossa percepção do real muitas vezes ao ponto de termos vontade de fechar os olhos e apenas ouvir. O envelhecimento através da música do filme e de alguns elementos sonoros que de forma pertinente se deixam presentes: o mastigar, o chupar um dedo, os pássaros, o lavar da louça. No fim de tudo a velhice soa a pós-clímax, a drama e a uma certa complacência romântica na dor de uma juventude perdida (alguns idosos vemo-los novos em fotografias, como que intimando o seu passado). A única coisa que aqui permanece jovem é a vontade genuína de observar de Dwoskin, embora sempre contaminada pelo lado ensaístico, vertido aqui em filme-lamento.
Embora haja notícias de que os dois últimos filmes de Apichatpong Weerasethakul, Mekong Hotel e Ashes (ambos de 2012) terão estreia comercial brevemente, não me pareceu sensato perdê-los em contexto de festival. Não há muitos cineastas que tenham uma aura profética tão forte como o tailandês: parece que carrega às costas o futuro do cinema. É certo que houve algum desapontamento no final da sessão entre algumas pessoas (isto para além das que dormem com Apichatpong, entenda-se; com esses a história é outra). E também é certo que essa aura “exige” um tom prolífico em relação ao qual é muito difícil manter índices de qualidade equiparáveis a obras como Sud Pralad (Febre Tropical, 2004) ou, claro, Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010). O que equivale a dizer que os seus últimos dois filmes não podem deixar de ser periféricos em relação àqueles “gigantes”. Dito isto, e para além de um certo regresso ao primitivismo como marca autoral – o hibridismo genealógico dos seres, num contexto semi-realista, que volta a estar presente em Mekong Hotel (há fantasmas que comem vísceras, para ser curto e irónico), saliente-se dois pontos importantes no seu cinema e que nesta sessão estiveram à vista.
O primeiro ponto liga-se um pouco à tese heideggeriana do “homem como formador de mundo”. Essa ideia, que no alemão contrastava com a pobreza de mundo no animal, parece ganhar no contexto da arte, e mais particularmente no cinema do tailandês, uma dimensão estética. Ashes, que foi feito quase exclusivamente com uma LomoKino, parece comunicar com o dito cinema experimental mas para logo “escavar” um mundo. Neste, a falha, o snap (quer do shot, quer do som dele) parecem sugerir que o mecanismo rouba (escava, é mesmo a palavra) pedaços ao meio envolvente. Com isso Apichatpong produz algo ex novo, que é uma forma do documental “criar” a realidade, desenhá-la (“I quit filmmaking. From now on, I will draw”): o seu cão King Kong que já não ladra, uma jovem a pintar as unhas dos pés, ciclistas, fogo de artifício. Dir-se-ia de uma Tailândia a desaparecer, uma memória, um sonho, um sonho dentro de um sonho. O que é que isso interessa? São imagens lentas, desfocadas, pesadas, de um mundo visto como mancha e velocidade. E o mais chocante, ou contemporâneo, é que parece que há algo vindo do futuro que caminha para nós. O segundo ponto, mais presente em Mekong Hotel, liga-se a uma ideia de serenidade que o tailandês trabalha a partir da distância (a recusa dos planos aproximados que parecem contribuir para agigantar uma noção de intimidade), mas também da heterogeneidade. Percebemos que este segundo filme acopla momentos: a sugestão de uma atormentada “existência” de um fantasma, uma história de amor, a relação do espaço do hotel com o rio, a música omnipresente da viola de Chai Bhatana (o compositor), o longo plano final sobre esse mesmo rio e os rapazes que fazem jet ski. Na verdade, essa heterogeneidade, que é o oposto do que agarra o espectador à maioria das obras, é precisamente aquilo que constrói meticulosamente um projecto contemplativo e sobretudo de estado de alma. Por isso, ver Apichatpong é uma experiência sensorial mas sobretudo anímica. Há algo que conforta, que vem do domínio do invisível, e que ironicamente coloca o espectador numa situação de alheamento próxima daquela que, por outros meios, é certo, fazia o cinema clássico.
E agora é tempo de falar de três filmes enormes. Os dois primeiros, A Última Vez Que Vi Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata e Arraianos de Eloy Enciso Cachafeiro, têm uma qualidade em comum: a hábil gestão entre o registo documental e o ficcional. Sobre o primeiro diga-se que tenho um certo receio de empregar a expressão que se vem desgastando com o tempo: “é um filme onde nada se passa”. Esta fórmula tem sido aproveitada para que se consiga excluir o filme de qualquer análise teórica que o reduza, por vezes que o confronte (claro que não estou a referir-me à expressão quando utilizada por aquelas pessoas que equivalem o “tudo” à narrativa clássica). Mas neste caso o “nada” tem uma natureza diferente, funcionando sobretudo como resíduo do ficcional. Explicamo-nos. Numa entrevista recente, João Rui Guerra da Mata salientava o desapontamento que sentiu quando voltou a Macau para fazer um documentário, que a sua terra de infância tinha agora muito menos interesse que a imagem que tinha em criança, paredes-meias com certas idealizações próprias da idade. Ou dizia da necessidade de inventar as histórias do Tintin que o seu pai lhe trazia em francês e que ele não conseguia ler. Ora este regresso a Macau corresponde a essa necessidade de ficcionalização de um espaço para lhe poder prolongar uma determinada dimensão mítica. Por isso, A Última Vez Que Vi Macau tem um corpo documental mas uma cabeça ficcional. Um filme de acção sem acção, ou antes, em que esta consiste em ver Macau. Isto é, assistimos à evolução de um filme de série B, noir – ou como num filme de John Houston [pensamos em The Maltese Falcon (A Relíquia Macabra, 1941] – em que todos os seus elementos estão marcados pela voz, pela sombra, pelo detalhe indicial no espaço. Todas as matrizes narrativas desse cinema estão presentes: o amor (Candy) figura sempre ausente, o encontro adiado pelo perigo, as mãos enluvadas dos malfeitores, o exotismo criminoso, o objecto fetiche (neste caso uma gaiola), os nomes extravagantes (Madame Lobo) e depois o cigarro, o whisky, a sombra. Ficam apenas as traves-mestras de género, em que visualmente só funcionam os indícios, o contorno, sendo que tudo o mais, a concretização, é expulso para off (não vemos o “recheio”: as mortes, o herói, o inimigo, a presença humana). Mas a intenção do filme, e nisso reside a sua subtil inteligência, não passa por recriar um projecto de ode ao detalhe, ao descentramento da acção, mas sim por tirar a “carne” do ficcional e visualizá-la, em espelho (em contraste, às vezes) com imagens de Macau, com o documental. Embora pareça que exista um trajecto que o João Rui tem de perseguir, muito deste é do domínio da espera, do gaze, da perda geográfica e emocional. A palavra perda é mesmo uma das chaves do filme: perder um encontro, um amor, mas também perder-se no espaço, perder uma visão idílica. E esse percurso, num “terceiro acto” soberbo, descola desse ficcional que vinha brincando com a verosimilhança, e ficamos com o espaço já perfeitamente “contaminado” pela inspiração clássica – os tigres desmaiados, os tiros e os fogos de artifício, os planos e o som das águias no céu. O filme despede-se de Macau, sob a égide de um qualquer fim da humanidade. Ficam os edifícios, os gatos e os cães omnipresentes e uma ideia de regressão até ao início. Não ao início da imagem mítica de que se havia partido, mas sim ao início dos tempos onde o fogo, os homens das cavernas, o primitivo ainda tinha todo um caminho à sua frente para trilhar. Filme soberbo que esperamos tenha a oportunidade de chegar às nossas salas em breve.
Há também uma importante participação da ficção no projecto de Eloy Cachafero sobre a regressão da ruralidade, designadamente numa aldeia entre a Galiza e Portugal. Mas ao contrário de Fogo de Yulene Olaizola, que também está na competição internacional e com o qual partilha uma intencionalidade, Arraianos é um filme de uma extrema ambição que só chega a essa ruralidade depois de impor uma destreza absolutamente excepcional na mescla de preocupações de olhar documental, drama de costumes, performatividade, tragédia e ensaio filosófico. Esta falta de fronteiras (o importante não é unir tudo mas sobretudo tornar o processo criativo em algo uno, em que não se pense na fronteira) parece estremecer tudo à sua volta, deixando, curiosamente, o filme afirmar-se com algo da ordem do sólido, do granítico. Sabíamos ser possível impor um olhar na incerteza e relativismo, hoje? Eu tinha as minhas dúvidas… “O mundo está ao contrário. (…) Fomos nós, ninguém mais que fez o cerco, esta gaiola sem saída, transtornámos a ordem primordial”. Isto coloca Eloy na boca dos seus arraianos, a partir de uma peça teatral. Uma “heresia” em forma de fábula em que o ambiente fantástico (a fotografia de Mauro Herece e a mistura sonora de Vasco Pimentel são um espanto: os guizos… os guizos… o vento, os pássaros, o fogo, é toda uma orquestra) está muito além do romantismo rural. Trabalha-se antes a nitidez do cinema nesse processo em que as fotografias do passado queimam e as “árvores que são todas iguais” geram uma individualidade da expressão misteriosa em quem as abate. Próximo, despojado de intelectualismo, é a filosofia da espera (esperar sempre) da luta (lutar sempre) que mostra a acção criativa sobre a realidade como aquela que realmente a puxa para a frente. Entre a cigarra e a formiga, entre sonhar e comer, não pode haver distinção. Essa fluidez que trabalha o incompreensível e o mistério como aquilo que realmente apanha a verdadeira dimensão documental de uma situação já valeu a nomeação de Arraianos ao prémio cineastas do presente em Locarno. E não me parece que fique por aqui…
Como isto já vai longo, queria apenas fazer breve referência a outra obra-prima do cinema novo iraniano (por mim, podem mesmo tirar-lhe o novo), Sib (A Maçã, 1998) de Samira Makhmalbaf. Agora não me interessa tanto discutir se o filme, que recebeu uma menção especial do Júri em Locarno, teve o dedo da família gerando a glória precoce da cineasta então com 17 anos. Sendo uma obra indiscutível sobre a formação infantil, a liberdade e a relação entre pais e filhos, convém que se diga que esse estado de “lição” é feito com uma maçã e uma serra: o pai tranca as filhas porque quando tem de sair a esposa invisual não consegue controlar para onde estas vão; não sabem falar e nunca foram à rua; uma queixa dos vizinhos traz uma assistente social a casa que faz o inverso, tranca o pai que tem de serrar as grades para poder sair e liberta as filhas; é aí que estas aprendem o valor do dinheiro ou o sabor de uma maçã. Esta descrição serve para incitar todos a irem ver o filme que ainda passa no último dia do festival, dia 28, às 16:15 na Culturgest. Mas o que me merece a atenção é que esse didactismo infantil do filme (tão caro ao cinema iraniano, basta espreitar a carreira de Kiarostami) é atingido aqui por uma via que não podia ser mais alheia a um dictum. Por isso, relembramos esse lixo retórico que invade as escolas de cinema sobre a necessidade de resumir um projecto numa frase e que vem na sequência da identificação “indispensável”, “tortuosa”, “esotérica” entre uma história e o seu realizador. Como se essa súmula de identificação, que em muitos casos leva o inexperiente aluno a extrair logo a moral de uma história ainda por narrar, pudesse converter o anónimo em autor. Por vezes, apaziguar o terror de vir a ser um tarefeiro leva a inverter os papeis: um autor é o que cria com uma marca e não o que marca através da criação.