Pode parecer um pouco despropositado lançar um olhar frio e entomológico sobre uma animação, ou talvez nem tanto, porque a peripécia deste Frankenweenie – o ressuscitar de animais de estimação – minimiza aparentemente o estrago (e além do mais está na moda fazer essa “desfeita” aos filmes da Disney). Este olhar permite ver o novo filme de Tim Burton como uma tentativa de se auto-extrair de um processo de catalogação e repetição que o colocava numa infernal máquina de fantasia esvaziada, com Johnny Depp e Helena Bonham Carter como anexos figurativos. Basta recordar o desinspirado Dark Shadows (Sombras da Escuridão, 2012).
Mas esse olhar frio permite ir mais longe dizendo que se trata de um regresso literal, inclusivé a si próprio, no retomar de uma curta-metragem que fez em 1984 com o mesmo nome. A ironia desse regresso anda nas bocas do mundo e é fácil de descrever: foi essa mesma curta – que à data lhe valeu o despedimento da Disney por ser tida como demasiado negra e assustadora para as criancinhas que agora é expandida em longa-metragem e transformada em animação stop motion, a expensas da própria Disney e como demonstração da dimensão gentil e humanista do universo do cineasta.
Nestes quase trinta anos que passaram o mundo mudou. E mudou tanto que Frankenweenie é hoje um objecto inocente e que, vivendo da recriação do romance de Mary Shelley e de referências intermináveis aos monster movies dos anos 30 e 40, a Vincent Price, a Drácula, a Christopher Lee, a James Whale, Ed Wood, etc., etc., se insurge como animação tornada em pedaço de nostalgia que até o preto e branco gótico de Burton permite estender. Sobre o facto de se tratar de uma animação diga-se que isso se deve em parte porque a resposta das audiências mostra que o coração de Tim Burton está muito no traço e no detalhe do mundo animado [toda a gente tem ainda os olhos vidrados em The Nightmare Before Christmas (O Estranho Mundo de Jack, 1993), inegavelmente um dos seus melhores filmes].
Contudo, não concordo muito com essa simplificação de que o “burtonismo” se revela apenas e se sente mais à solta na animação. É que obras como Edward Scissorhands (Eduardo Mãos de Tesoura, 1990), Pee-wee’s Big Adventure (A Grande Aventura de Pee Wee, 1985) ou mesmo Big Fish (O Grande Peixe, 2003), atestam que por detrás do retorno à animação, este Frankenweenie produz sobretudo essa ideia perturbante de que o verdadeiro regresso que aqui se efectua é a uma ideia clara e límpida de humanismo (perturbante no sentido de ser hoje necessário voltar ao humanismo; mas onde estivemos entretanto?). Neste caso, o mito Frankenstein (aqui canalizado para toda a família) já permite isso mesmo na sua história sobre a intolerância, ao qual se junta o dilema terno sobre as amizades primeiras do jovem Frankenstein, protagonista do filme, que num momento em que a electricidade está pela hora da morte decide fazer reviver o seu cãozinho Sparky à força de relâmpagos após a sua trágica morte.
Tudo isto quer dizer no fundo que o novo Burton não é propriamente original e que parte do seu prazer surge em dar com as tartarugas chamadas Shelley, a voz de Christopher Lee ou a fisionomia de Vincent Price no professor de ciências Mr. Rzykruski (já agora a voz é de Martin Landau, também eu não consigo evitar jogar o jogo), isto é, encontrar as referências a muito do imaginário fantástico do cinema. Dito isto, saliente-se, pasme-se pois Frankenweenie é também claramente um dos melhores Burtons pelo menos desde Corpse Bride (A Noiva Cadáver, 2005), já lá vão uns anos. Esse fechamento do seu universo numa bola de espelhos, que de onde se veja se vê sempre o mesmo (Burton olha-se nos olhos), é preferível a esse terrível vazio decorativo que aprisionou nas últimas obras o seu olhar.
Para que o reviver de qualquer coisa que Burton consegue dominar fique completo é ainda necessário que a sua predilecção pelo detalhe no barroco gótico (só um: os pontinhos dos olhos da dona do gato que traz o mau agoiro à história), se encontre de forma frutuosa com este 3D que vai varrendo todos os filmes numa espécie de novo “esperanto messiânico” da língua do cinema. É que aqui a terceira dimensão continua a funcionar – siga-se batendo no ceguinho – na maioria das vezes como resíduo, ou se quiserem, retórica comercial e técnica. Vai dar (quase) ao mesmo.