Aproveitámos o ensejo do Queer Lisboa para entabular conversa com o João Rui Guerra da Mata (júri da competição internacional de longas-metragens no festival), o eterno colaborador de João Pedro Rodrigues, que se estreou este ano na realização a solo com O Que Arde Cura. A primeira parte da entrevista debruça-se sobre o cinema queer em Portugal (base do debate de quinta-feira passada, que o Ricardo Vieira Lisboa reporta aqui), a importância dos festivais (queer ou não), o cinema português, e a pornografia. A segunda parte abrange a relação profissional e pessoal de Guerra da Mata com João Pedro Rodrigues, as co-realizações, e principalmente a última delas, A Última Vez Que Vi Macau (2012).
Ricardo Vieira Lisboa – No debate a propósito do cinema queer em Portugal disseste que os filmes em competição pareciam muito fofinhos. O que tens achado da competição?
João Rui Guerra da Mata – Há filmes muito bons em competição. Embora não fosse difícil escolher quais eram os meus favoritos, houve vários filmes de que gostei. Há é uma tendência para aquilo a que se convencionou chamar cinema queer de se aproximar do cinema mainstream, o que é um reflexo do Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005). É uma opção como outra qualquer, porque eu acho que tem de haver cinema mais comercial e cinema mais de autor, o que me preocupa é se o cinema queer quer também ser normalizado. Detesto coisas normalizadas; se de repente toda a gente começar a fazer filmes para ser aceite, perde-se uma coisa que toda a ideia queer, e antes de queer, gay, e antes de gay, quando não havia definição, que era uma tentativa de se fazer coisas diferentes; umas vezes corriam melhor, outras corriam pior. O que me irrita é quando de repente as pessoas acham que têm de ser aceites, eu não concordo com isso, um gajo não tem de ser aceite porque é igual, tem de ser aceite porque tem direito a ser diferente, é o contrário. E isto serve para o cinema, serve para qualquer arte. Quase todos os filmes que estiveram cá, os melhores, para todos os efeitos, são um bocadinho consagrados, mas o Weekend (2011) é um filme com o qual eu embirro particularmente, porque já não é o género de filme a que eu levaria a minha mãe, é o género de filme a que eu levaria a minha avó. É um filme que obedece a uma ideia de que temos de ser todos muito fofinhos… Eu não acredito nisso; filmes que levantam problemas, filmes que vão contra a maré, tendencialmente são mais interessantes do que filmes que querem ser aceites.
RVL – Faz sentido começar-se a fazer cinema queer em que não haja necessidade de haver personagens homossexuais?
JRGM – Disse no debate, segundo me lembro, que os filmes que nós víamos na Páscoa e no Natal hoje em dia são considerados filmes queer ou que têm uma visão queer. Queer é um conceito relativamente recente e há imensos estudiosos da matéria que até o rejeitam, porque acham que é demasiado abrangente. Há filmes que são considerados heterossexuais cujo ponto de vista é completamente queer. O que é que faz um filme ser gay ou ser lésbico ou ser queer? É a temática? É o realizador? Quer dizer, quando um realizador gay faz um filme heterossexual, filma esse filme da mesma maneira que um realizador heterossexual? Isso é relevante? Basicamente acho que há cinema e é essa a única coisa que me interessa. Se ele é queer, se é a puta que o pariu, é-me absolutamente indiferente. É importante é haver festivais queer, que é uma coisa completamente diferente. Os festivais queer dão visibilidade a um tipo de cinema que de outra maneira poderia não a ter… Mas não é a Weekends nem a Brokeback Moutains, é outro tipo de cinema. Eu compreendo que o Queer Lisboa tenha um determinado número de filmes que atraiam pessoas, porque os números são importantíssimos, principalmente no estado actual do país, ou então [o festival] desaparece. E é por isso que acedi a ser júri. É fundamental apoiar-se o festival e concordo com todas as opções que toma, incondicionalmente, nem as questiono. A única coisa que me interessa — e a maior parte das pessoas pensa que eu digo isto só para ser correcto ou não sei quê — é o cinema e depois interessa que haja festivais que dêem visibilidade a filmes… Há filmes que vão mesmo para os festivais, que eu aprendi ontem no debate que se chamam generalistas, que só fazem festivais e se não houvesse esses festivais os filmes não existiam, ou melhor, os filmes podiam existir mas ninguém os via. Os festivais servem para mostrar filmes. Agora se os filmes são queer ou… É cinema, há bom e há mau, segundo os critérios de cada um.
RVL – Aqui em Lisboa dá-me a sensação de que o grosso do público do festival vem da comunidade LGBT e parece que se está a pregar aos convertidos…
JRGM – A questão é: quem é que são os convertidos? E convertidos a quê? Vamos ver quais são as escolhas do público. Depois de se ver qual é o filme escolhido pelo público, percebe-se se estamos ou não a pregar aos convertidos. Pode ser que tenha alguma surpresa. Se calhar ainda bem que há um festival queer que faz com que a comunidade gay vá ao cinema. Se calhar ainda bem que há um IndieLisboa que faz com que os alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema vão ao cinema… E eu fui professor lá durante onze anos… Eu não os vejo na Cinemateca… É a velha questão: as pessoas vão a um festival de cinema para ver os filmes ou porque é um festival? As pessoas vão ver um concerto de um grupo ou vão a um festival de Verão? É mais a coisa do convívio ou da música ou dos filmes? Nunca se está a pregar a ninguém. Vou dar um exemplo muito giro, um exemplo que a própria organização [do Queer] pode confirmar. Quando o João Pedro [Rodrigues] apresentou O Fantasma (2000), que é um filme complicado, a maioria das pessoas que estava na sala, e eles ainda não conseguiram bater esse recorde, era heterossexual. E é curioso que o filme é muito mais bem recebido pelos heterossexuais do que pela comunidade gay em qualquer parte do mundo. Porquê? Porque não é um filme que se possa levar a mãe para ver, não é um filme que ajuda à causa, seja ela qual for, porque não é um filme normativo; questiona, expõe, não é de certeza o Brokeback Mountain. Este ano, quando passaram O Que Arde Cura (2012) e o Parabéns! (1997), a percentagem de heterossexuais que estava na sala era muito muito grande…
RVL – Se calhar queriam ver os dois filmes juntos…
JRGM – Se calhar há filmes que atraem todo o tipo de pessoas e se calhar há filmes que só atraem certo tipo de pessoas. Da mesma maneira que uma grande maioria das pessoas foi ver o Morangos com Açúcar – O Filme (2012) e há uma grande minoria que vai ver os filmes do Pedro Costa. E isso faz com que um seja melhor do que o outro? Nem sequer vou por aí… O que é importante é que as pessoas vão ver filmes, sejam da comunidade, sejam de outra comunidade, do que for. Se é preciso haver um festival queer? Sinceramente preferia que não houvesse um festival gay ou lésbico… Aliás, aquilo que se está a ver é que cada vez mais os festivais de cinema generalistas têm filmes de temática gay mas têm os filmes que levantam questões, não têm os filmes fofinhos, porque de filmes fofinhos estão eles cheios já. Preferia mesmo que não houvesse [um festival queer], preferia que isto fosse de tal maneira abrangente que não houvesse necessidade… Foda-se, ontem [na quinta, durante o debate] disse uma coisa que me saiu, depois fui aplaudido por isso, que foi: não andei não-sei-quanto tempo para sair do armário, para me meterem dentro de uma caixa. Não me interessam nada os rótulos em relação a nada. Mas, por outro lado, eu percebo que exista um mercado, nomeadamente de DVD… e como alguém na assistência [do debate] disse… Eu nunca me lembraria de escrever na Amazon “gay cinema” para ver o que é que havia, eu não vou encomendar um filme gay da mesma maneira que não encomendo um filme hetero. Mas faz algum sentido uma pessoa escrever “heterossexual films” a ver o que é surge? Porra, imagina, estás ali uma semana, um mês, um ano… Uma pessoa quando vai comprar um filme é porque é um filme que quer ver.
João Lameira – Há filmes que parecem ser criados para os festivais e há filmes que parecem ser criados para os festivais queer, se calhar são esses filmes os mais fofinhos…
JRGM – Os mais fofinhos não acredito que sejam criados para os festivais. Eu nem sequer acredito que haja filmes criados para os festivais. O mercado está tão complicado hoje em dia a nível internacional e são tão raros os países que ainda conseguem ter um circuito mais ou menos alternativo de cinema que não seja dominado por multinacionais, que há filmes que só conseguem estar em festivais. Agora, se há pessoas que fazem filmes só para festivais? Se calhar há, não vou dizer que não há… Eu não concordo com filmes para festivais. Os filmes são feitos para serem vistos, não há outra razão para fazer cinema. Ser visto não significa fazer um filme para toda a gente ver, significa que um gajo deve fazer um filme que acha que tem de fazer e deve acreditar que há mais pessoas que têm o mesmo interesse que ele ou que ao menos têm interesse em ver aquele filme. Os filmes fofinhos vendem-se mais facilmente e são maiores sucessos e o que se está a ver agora nos festivais de cinema queer com esta ideia da normalização é esse género de filmes, que dão uma imagem melhor, mais limpa, a ganhá-los. Isso é fruto do tempo que nós vivemos… O que é que o [Rainer Werner] Fassbinder diria se lhe começassem a chamar queer? O homem tinha uma apoplexia. O que é que o [Cecil B.] DeMille diria? Alguém questiona que o não-sei-quantos é isto ou se o não-sei-que-mais é aquilo? Não, é cinema. E o Fassbinder, meu Deus, não podia ser mais aquilo que era! E filmava homens e mulheres, curioso, não é? Fazia aquilo que queria, aquilo que sabia fazer. Acontece-nos tanto isto, um gajo faz aquilo que sabe, umas vezes sai melhor, outras vezes sai pior, há umas pessoas que gostam, outras pessoas que não gostam. E depois há umas pessoas que precisam ter um rótulo para vender. Neste momento, existe um grande rótulo no cinema português que é esta coisa do realismo social. Parece que vende. E como eles se andam a multiplicar, parecem coelhos, e cada vez piores. Bestial! Mas vende e todos citam o mesmo, o Pedro Costa, que é aquele gajo que pega verdadeiramente na realidade, esse, sim, não inventa a realidade, vai filmá-la, e transforma as pessoas mais miseráveis em super-heróis. Exactamente o oposto do que este gajos andam a fazer, embora todos o citem como grande mentor. Ele que é capaz de transformar os indivíduos da barraca em qualquer coisa entre o [Andy] Warhol e a Leni Riefenstahl, passando pelo Construtivismo Russo. E esta malta que o cita não só inventa realidades como faz uns filmes absolutamente miseráveis. É mais um rótulo como outro qualquer. Eu só citei o Pedro Costa, que fique bem claro, não disse o nome de nenhum dos outros. Só falo das pessoas de que gosto.
RVL – O cinema tem géneros – terror, comédia, etc. É importante, então, que o cinema queer passe a trabalhar mais sobre os géneros e menos sobre as historiazinhas…
JRGM – Sem dúvida.
RVL – É preciso haver filmes de terror com gays, filmes de acção com gays?
JRGM – É o que o Bruce LaBruce está a tentar fazer, os zombies, o Otto; or, Up with Dead People (2008). Os únicos géneros de cinema que existem são drama, comédia, musical, por aí fora, depois existem sub-géneros, e depois existem filmes encaixotados. Eu não sei se vocês fariam as mesmas perguntas no MOTELx. É importante haver filmes de terror? É importante haver filmes fantásticos?
JL – É uma pergunta que se faz, principalmente quando há tão pouco cinema de género em Portugal.
RVL – Temos tão pouco cinema que qualquer coisa faz falta.
JRGM – Por isso é que eu digo e repito é muito importante haver festivais queer, mas se calhar era mais importante haver filmes bons. Se calhar era mais importante nós estarmos a ver os filmes portugueses no Queer e não termos um bocado de embaraço por estarmos lá a vê-los. E quando vemos um bom, ficamos tão felizes. Foda-se, este gajo fez um filme! E estou-me a cagar se é queer ou não é queer, fez um filme e o filme é bom, porra. E é bom neste festival e em qualquer festival em qualquer parte do mundo. É um filme. É isso que falta em Portugal: cinema. E infelizmente a única maneira de fazer cinema em Portugal verdadeiramente com liberdade é como em França: cinema subsidiado. Ao contrário da América, em que é possível arranjar-se dinheiro, em Portugal, as pessoas que têm dinheiro não investem em arte. Vocês sabem a alegria que é um gajo estar num festival no raio-que-o-parta e estarem não-sei-quantos filmes portugueses nesse festival? Teres os directores dos festivais a dizerem que a cinematografia portuguesa é a mais interessante de seguir? Nós somos o país mais pequeno da Europa, com menos dinheiro e com o maior número de filmes e realizadores com impacto internacional que são absolutamente ignorados cá. Falem-me de um filme islandês. De um irlandês. Dinamarquês? Sueco? Agora vejam o income desses países e comparem com o nosso. Como é que é possível num festival internacional de repente ver cinco filmes portugueses? É porque está todo o mundo louco ou será que nós estamos a fazer qualquer coisa que tem interesse? E que não é uma coisa de moda, as modas passam e isto é uma coisa que tem vindo a crescer . São filmes que são convidados pelo festival, não é esta coisa moderna de delegação portuguesa… E vocês sabem o que é estar num festival internacional e ver que há banquinhas de todo o mundo e nunca há uma banca portuguesa? E esta coisa extraordinária precisamente quando finalmente estamos a ter uma cinematografia que tem pessoas no mundo interessadas em comprar, porque a cultura é uma coisa que representa o país e deveria ser uma coisa que dá dinheiro… É natural que não só se consiga fechar o Ministério da Cultura como tornar o dinheiro [do cinema] refém do Ministério da Economia e conseguir fazer com que, possivelmente, em 2013 e 2014 não vá haver um filme português subsidiado? Será que esta gente não percebe que não é por haver muitas câmaras de vídeo e as câmaras estarem cada vez mais baratas que se fazem melhores filmes? E esta história de fazer filmes sem dinheiro é muito giro. Quando estes jovens realizadores dizem que fizeram o filme sem dinheiro, um gajo pergunta: mas espera aí, como é que se faz um filme sem dinheiro? É tecnicamente impossível fazer um filme sem dinheiro.
JL – Não pagando a ninguém.
JRGM – Um gajo pode trabalhar de borla uma vez, duas vezes, mas ninguém vive a trabalhar de borla, acho eu… quer dizer, agora estamo-nos a habituar a trabalhar sem receber. E esse discurso é perigoso. O Gabriel Abrantes disse isso uma vez e andou uma semana a ouvir-me, todos os dias. Disse qualquer coisa como “este filme foi feito sem dinheiro e eu tive um helicóptero e os gajos com subsídios filmam na rua deles”. E eu tenho a maior admiração pelo Gabriel, é meu amigo, mas andou uma semana a ouvir-me, andei a explicar-lhe como era perigoso dizer isso, porque fora do contexto dá hipótese a certas pessoas… Da mesma maneira que é obsceno o Nicolau Breyner vir dizer que o cinema de autor é uma invenção dos Cahiers du cinéma, que é uma merda e só devia haver cinema comercial e dizer isto quando está a promover um filme que ele fez com subsídio do Estado e que é tão comercial que fez 5000 espectadores.
RVL – Isto é uma provocação. Eu estava a fazer a pesquisa para preparar a entrevista e descobri um vídeozinho de segmentos d’O Fantasma num site pornográfico. O que é que é se sente quando um filme em que se trabalhou, em que se gastou tempo e dedicação aparece num site pornográfico?
JRGM – Não sei. Se calhar a resposta à tua pergunta é: qual é o problema da pornografia? Não precisamos dela? Bestial! Está em sites porno? Ah, pois está. Já viste que bom, há mais pessoas a verem aquilo. E se calhar há uns gajos que dizem “o que é isto?”, e vão comprar o DVD. Depois são capazes de se assustar, apanham uma seca brutal. O DVD d’O Fantasma foi editado em Hong Kong com uma capa manga e chama-se O Demónio da Noite. Eu imagino as pessoas que compraram aquilo sem saberem o que estavam a comprar, porque foram atrás do nome e da capa, e quando chegaram a casa disseram: mas isto não se vê nada!, e pelo meio há assim uns gajos a fazerem umas coisas a outros gajos. Os tipos que editaram o filme na América, que eram uns grandessíssimos filhos da puta, acharam que o filme era muito escuro e sem pedirem autorização a ninguém alteraram a fotografia de modo a que se visse tudo. Ora, partindo do princípio que uma das coisas extraordinárias que O Fantasma tem é a fotografia (a maneira como o João Pedro e o Rui Poças, e de alguma maneira eu, uma vez que fui a vítima de serviço para pôr o fato a brilhar…), e depois uma editora de vídeo altera a fotografia porque achava que não se via nada?. Como eu disse ao João Pedro, devia ser processada, mas eles também foram à falência, por isso não há problema. Mais engraçado do que isso, o DVD tinha todas as cenas de sexo do filme num dos extras do DVD. Era aquilo que eu chamava o extra p’rá punheta. E isto foi a edição de DVD americana.
JL – Isso não é ilegal?
JRGM – Pois, eu acho que é.
RVL – Isso é quase um objecto de museu.
JRGM – Foi lançado pela Picture This. A mim, não me preocupa absolutamente nada… quer dizer, o filme não é meu, é do João Pedro Rodrigues, mas está em sites porno? Boa! O filme perde valor por estar em sites porno? Não me parece. Sei lá, estou a lembrar-me que o João Pedro teve seis páginas na Artforum. O Julião Sarmento, que é nosso amigo, telefonou-nos e disse ao João Pedro: “Ó meu grande sacana, como é que tu arranjaste seis páginas na Artforum?”. A Artforum teoricamente é uma revista de arte e não são assim tantos os artistas plásticos portugueses que tiveram seis páginas e um editorial. E muito disso foi à custa d’O Fantasma, que é estudado em várias universidades e é considerado mais do que um filme gay ou queer, um objecto de arte. Se aquilo está na Artforum e está em sites porno, já viste que maravilha? É maravilhoso. Portanto, não houve provocação alguma, lamento.
(Não se pense que este tu-cá-tu-lá é qualquer forma de desrespeito, já que o Ricardo Vieira Lisboa e o João Lameira foram obrigados a tratar Guerra da Mata por tu, depois de vários protestos.)