Como muitos outros cineastas da sua geração, John Hillcoat começou por realizar vídeos de música, embora não se reconheça nos seus filmes a famosa “estética MTV”, que “epilepsizou” certo cinema (com melhores e piores resultados). Da lista de músicos com que trabalhou contam-se Siouxsie and the Banshees, Therapy?, Depeche Mode e Nick Cave. O encontro com o compatriota terá sido o mais importante para a carreira do realizador australiano.
Hillcoat surgiu nas bocas do mundo com The Proposition (Escolha Mortal, 2005), um western nos antípodas, a história sangrenta do conflito entre uma família de criminosos especialmente violenta e a Lei, representada por esse extraordinário actor inglês, Ray Winstone. Apesar das qualidades, é pouco provável que o filme tivesse granjeado tanto sucesso (ou até que tivesse sido feito), se o argumento não fosse assinado por Nick Cave, que também compôs a banda-sonora com Warren Ellis. Foi, sobretudo, a curiosidade de perceber do que o músico (e escritor) era capaz que levou o espectadores às salas e os jornalistas e críticos a escreverem sobre o filme. Às tantas, John Hillcoat não era mais do que uma nota de rodapé na notícia.
Talvez por isso, Hillcoat, no projecto seguinte, preferiu afastar-se de Cave e adaptar o aclamadíssimo escritor Cormac McCarthy [numa altura em que, depois de No Country For Old Men (Este País Não É Para Velhos, 2007) dos irmãos Coen, toda a gente queria pegar nos seus livros]. The Road (A Estrada, 2009), que contava com Viggo Mortensen no papel principal, não teve o mesmo impacto nem na crítica nem no público. Muitos se dispuseram a descartar Hillcoat como um one-hit wonder que, sem a companhia de Cave, não valia a pena seguir.
A John Hillcoat restou-lhe restabelecer a relação com Nick Cave e assim nasceu Lawless (Dos Homens Sem Lei, 2012) que agora se estreia. Adaptado de um romance histórico de Matt Bondurant (neto de um dos protagonistas), baseado, portanto, em “factos reais” (não consigo escrever estas duas palavras juntas sem usar aspas, como se houvesse factos de outro tipo), o argumento volta a encontrar uma família de criminosos — três irmãos: um indestrutível (Tom Hardy), outro psicótico e bêbado (Jason Clarke), outro meio cobardolas (Shia LaBeouf) — em luta com a Lei, ou melhor, contra o sistema (que tem a cara e os maneirismos de Guy Pearce). Forçando um pouco a nota, Lawless pode ser classificado como um western, por muito que a acção decorra na Costa Este dos Estados Unidos nos anos 30, década da proibição do álcool e das grandes guerras de gangsters (apenas entrevistas).
[Há na figura do ladrão da Depressão qualquer coisa do cowboy renegado do século XIX, qualquer coisa de Jesse James em John Dillinger: o antagonismo contra o Governo Federal, a possibilidade da vitória dos pequenos contra os grandes, o mito do indivíduo e do individualismo. Os irmãos Bordurant não têm a envergadura mítica de um Dillinger, nem são ladrões de bancos como este (são simples contrabandistas de álcool), mas representam a mesma vontade de marcar o seu território, de não se vergarem perante ninguém. Como autor, Cave repete-se ou está-se de novo a cair no erro de desprezar Hillcoat?]
Sente-se até no espaço da estação de serviço que os Bordurant possuem a mesma concentração do saloon de Rio Bravo (Rio Bravo, 1959) e na imagem de Jessica Chastain algo da Feathers de Angie Dickinson. Mesmo que os tempos sejam outros (na acção e cinematograficamente), bem mais sanguinolentos e cruéis (e Hillcoat não se furta a mostrar os resultados da violência), a história conserva a estrutura clássica: o conflito entre os bons e os maus, em escalada até ao confronto final; as histórias de amor meio esquemáticas (Chastain é objecto de amor de Hardy; Mia Wasikowska o de LaBeouf); a transformação do titubeante LaBeouf, que, ainda criança, não consegue matar um porco, em anjo de vingança.
Hillcoat e Cave acreditam nesta história e nestas personagens — o elenco está pejado de estrelas ou candidatos a tal — e isso transparece no ecrã. Não atingem a desconstrução do superior The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford (O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford, 2007) de Andrew Dominik, nem tal pretendem alcançar; preferem antes a continuação possível do cinema clássico norte-americano e de dois géneros que o ajudaram a erguer: o western e o filme de gangsters.