Nas outras duas longas-metragens que realizou, já dava para perceber que Rian Johnson gostava de brincar aos géneros, de subverter as suas convenções — Brick (2005) é um teen-noir (um film noir numa escola secundária); The Brothers Bloom (Os Irmãos Bloom, 2008) uma tragédia à volta de um bando de vigaristas (que costumam comparecer em comédias). Neste Looper (Reflexo Assassino, 2012) pega no tema das viagens no tempo, retrabalhando um sem número de referências do “sub-género”.
No entanto, a escolha dos géneros não parece aleatória, ou seja, duvida-se que atingisse os mesmos resultados com um musical ou um western (embora haja neste filme uma personagem “saída” de um), pelo menos nas suas formas clássicas, visto que necessita do engodo que estes não costumam encerrar e que comanda os que filmou (The Brothers Bloom, provavelmente o seu pior filme, é aquele que revela mais esse jogo). Rian Johnson pode não ver o cinema como uma máquina de enganos (à maneira de David Mamet, o grande bluffer), mas usa os seus mecanismos para levar avante os seus intentos. A linguagem do cinema (de um certo cinema, que nada tem a ver com o realismo) e a própria feitura de um filme são indissociáveis das suas histórias. Haverá tema tão cinematográfico como o das viagens no tempo? Quando uma personagem revisita um tempo não é como se estivesse nos bastidores ou num making of da sua própria narrativa? E a sua capacidade de refazer/mudar acontecimentos passados não emula o trabalho do argumentista sempre a tentar melhorar a história que tem em mãos (para além de comentar a onda de remakes que inundou Hollywood)?
As viagens no tempo devem muito do seu fascínio à fantasia da possibilidade de mudar o destino. Looper adopta essa ideia — à laia dos filmes que referencia: The Terminator (O Exterminador Implacável, 1984), 12 Monkeys (12 Macacos, 1995) [e claro La jetée (1962)] — assim como com a do Duplo. Ou não fosse esta a história do antagonismo entre a versão mais nova de um homem e a versão mais velha da… ia escrever da mesma pessoa, o que seria mentira (os objectivos e as experiências de cada um são completamente diferentes, tanto que, a dado passo, se tornam antagonistas). Penso que não será grande desmancha-prazeres referir que Bruce Willis e Joseph Gordon-Levitt representam a mesma personagem. Já notara que Gordon-Levitt tinha um talento inato para imitar outros actores, pelo que o seu desempenho como Bruce Willis, com a ajuda de um nariz postiço, não surpreende. Bruce Willis, por seu lado, resgata a figura trágica de 12 Monkeys.
Que todos estes temas mais ou menos profundos estejam presentes num intenso filme de acção sem o sobrecarregaram é demonstrativo da inteligência de Rian Johnson, que se revela também naquele momento delicioso a meio da cena do diner em que Joe se senta face a face (a ele próprio) pronto para se matar (isto faz sentido para quem vir o filme) e diz que poderia estar ali a explicar todas as implicações das viagens no tempo mas ficaria ali horas e teria de fazer diagramas com pauzinhos, por isso mais vale nem ir por aí. Nesse sentido (e noutros), Looper é o anti-Inception (A Origem, 2010). O último era quase todo exposição/explicação, o primeiro preocupa-se menos com isso (quase despreza essa técnica ou, pelo menos, minimiza-a) do que com as personagens e seus dramas. Como outros protagonistas de Johnson, Joe (os dois) vai de um ponto de um extremo egoísmo para o do supremo altruísmo, até ao sacrifício — um tema que se encontra em todos os filmes de Johnson e que provavelmente é o que lhe mais interessa.
Há ainda outras qualidades em Looper: a representação/visão do futuro, negríssima (até tem um Anti-Cristo) e plausível (nalguns pontos, teme-se que profética); a banda-sonora, de Nathan Johnson, que parte de sons concretos para edificar uma envolvente ominosa; a tensão muito bem conseguida, que não nega nem o sangue nem a violência. É interessante também que para um filme de viagens no tempo, à excepção de uma montagem e de uns flashforwards, nunca saia de uma data específica. Pode apontar-se uma coisa ou outra coisa a Looper, nomeadamente que é demasiadamente derivativo (todas aquelas referências), no entanto isso parece fazer parte da brincadeira e não impede de ser um óptimo e inteligente filme de acção, o que se usa chamar um blockbuster de autor (embora não seja exactamente um blockbuster).
Sem Comentários
Na sua essência, esperava mais do filme, talvez excessivas expectativas. Mas gosto do Rian Johnson (só vi o Brick e sei que também realiza alguns de Breaking Bad). Acho que tem uma noção de cinema interessante e é um apaixonado por esta arte, a forma como brinca com os géneros é prova disso.
A dinâmica entre os dois antagonistas é do melhor do filme como bem referes. Se ao menos as alterações emocionais se manifestassem tão rápido no futuro como as físicas e o filme teria um desenrolar diferente, porém, as opções são tantas (como a personagem de Willis explica) que é sempre uma via complicada.
E eu que gosto de Christopher Nolan também gostei mais deste do que do Inception, apesar da ideia deste último ser igualmente interessante, falo apenas como produto final, as cenas em si, têm mais pinta.
Eu ganhei gosto em dizer mal do Christopher Nolan, é quase uma obsessão. Agora a sério, acho que o Rian Johnson é mais realizador, filma melhor, trabalha melhor o espaço e as personagens, e por em diante. E as falhas de lógica do filme não me apoquentam, porque são exteriores a este. Tu podes dizer faz pouco sentido as memórias não se esfumarem logo quando o mais novo toma outro rumo, mas essa é a lógica interior e das coisas mais interessantes do filme, até porque leva ao tema da identidade (uno-duplo) e do sacrifício (o problema do Bruce Willis é não querer largar as suas memórias, não conseguir sacrificar a sua felicidade em nome da amada).
Não é que ache que não faça sentido, não era por aí, disse aquilo mais num sentido de explorar diferentes vias, porque se há assunto que dá para discutir até à exaustão neste género é as viagens no tempo.
Possivelmente até podia não funcionar bem esta via, mas era apenas uma opção que atirei para a conversa. Por exemplo, uma das coisas mais interessantes no filme é, como referiste, o facto de as personagens serem antagonistas.
Consoante o rumo das nossas vidas, daqui a 30 anos podemos ser uma pessoa completamente diferente daquilo que somos hoje. Mais curioso ainda é que ao agente causador dessa mudança é o próprio Joe quando decide regressar ao passado para mudar as coisas, mudando-se a si próprio (ao seu passado).
Essa luta por agarrar-se às memórias é notória na cena da fotografia, pois o outro anda a seguir outro caminho a mudar-lhe as coisas e eventualmente ele mudaria também. Algo assim.
Quanto ao filme que o Nolan trabalhou melhor as personagens, talvez o Insomnia. Aí também contou comum Pacino assombroso. E teve olho para escolher o Heath Ledger como Joker. Mas actualmente conta as histórias cada vez mais rápido e este deixa respirar as cenas. Mas também são estilos diferentes, isto dava pano para mangas 😛
O Christopher Nolan e o Rian Johnson têm estilos claramente diferentes. E, embora goste mais do segundo, o primeiro quando acerta, quando aprimora o estilo, como no “The Prestige”, não se sai mal. Ou seja, as cenas são rápidas, há truques por todo o lado, mas funciona. Já deve ter dito por aí que, apesar de tudo, não acho o Nolan incompetente (a não ser em cenas mais movimentadas; tem uma óbvia dificuldade em gerir espaços e as personagens dentro deles nessas alturas), antes desleixado, sobretudo nalguns filmes, como o último Batman.
Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A “Polémica” do Mês» do Keyzer Soze’s Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.pt/2012/11/a-polemica-do-mes-16.html
Cumps cinéfilos.