Estou com uma tremenda dificuldade em saber como iniciar este artigo. Quero escrever qualquer coisinha sobre o Sol e só consigo alinhavar meia dúzia de clichés, que vão desde a admiração pelos Impressionistas a um banal dia de praia com uma cerveja na mão e um maço de cigarros na boca. Também não ajuda estar a ouvir como ruído de fundo, por imperativos familiares, uma amálgama de retardados mentais a que os brasileiros chamaram “personagens de telenovela”. Ah, alívio; a televisão foi desligada e já posso pensar com outra claridade. Já vejo pingos de chuva e negrume no horizonte. Obrigado, mamã.
Quando se traz à baila o tema serial killer movies (assaz utilizado em muita véspera de natal), a mente do sujeito mais incauto é logo percorrida por cozinhas e salas lúgrubes, lixeira amontoada nos sítios mais recônditos, taras sexuais, António Borges, e, sobretudo e muito em particular e de forma especial, chuva. Muita chuvinha. As coordenadas climatéricas do género dos últimos vinte anos, através dos clássicos Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991) e Se7en (Se7en- Sete Pecados Mortais, 1995), estabeleceram como condição primeira a queda de torrenciais dilúvios que encheriam de pasmo qualquer doutor Anthímio de Azevedo. Parece que a chuva representa “instabilidade” e é um indicador de “nuvens negras”, e portanto “escuridão”, logo “grandes desgraças”.
Em Salinui Chueok (Memories of Murder, 2003), obra-prima de Bong Joon-ho, também existem esses elementos atmosféricos “indispensáveis”, mas diluídos numa apropriação do género absolutamente invulgar, estilhaçado e retrabalhado que é pelo realizador sul-coreano. Os primeiros minutos do filme, e que antecedem os créditos iniciais, são preciosos indicadores dessa liberdade narrativa e sentimental, cuja música tem relevo importantíssimo. Mais importante só eu não ter tabaco neste exacto momento e não haver cafés abertos e lojas de conveniência estarem a mais de 600 metros. Eu saía, mas tenho medo.
Um miúdo a apanhar gafanhotos numa seara. Um tipo a apanhar boleia de um tractor. Estas primeiras imagens já denotam uma certa estranheza cómica. O tipo do tractor desce para uma vala, onde se encontra algo amarrado e percorrido por insectos debaixo de uma espécie de esgoto. Silêncio e zumbidos. Bong entrecorta o olhar do tipo do tractor com o que está cheio de bicharia. Sempre em silêncio e em zumbidos. E depois deste terror silencioso, um dia soalheiro. No espaço de muitos poucos minutos, e praticamente sempre em calmaria profunda, passa-se da comédia austera à subtil inquietude para tudo terminar na mais plácida das melancolias. Algo que será uma constante até ao início do terceiro acto.
Tarô Iwashiro constrói uma banda sonora que se torna o principal elemento unificador do filme. A sua suavidade e lirismo passa incólume aos ziguezagues humorísticos das personagens; pelo contrário, atribui-lhes gravidade e melancolia, palavra que não se pode deixar de repetir perante as características desta obra.
Segundo o Instituto de Meteorologia e Geofísica, amanhã, em Portugal Continental, estará um Sol a “brilhar lá no céu”. Nos Estados Unidos isso significaria que seria altamente improvável que algum tolinho iria deixar os afazeres do dia-a-dia e tornar-se, por volta das cinco da tarde, num assassino sem identidade, de gabardine, botas da tropa e estúpido boné. Como os filmes nos ensinaram, é preciso estar chuva de partir árvores para que isso venha a suceder. Mais uma prova do carácter pedagógico e escolar do Cinema, não é só diversão, não, como maldosamente continuam por aí a proferir pessoas maldosas, essas sim, capazes de fabricarem patifarias (mesmo com Sol) a alguém só porque se acha o Con Air (Fortaleza Voadora, 1997) um belíssimo filme para míopes.