A certa altura em Mr. Nobody (Sr. Ninguém, 2009) uma criancinha comenta-nos os factos da vida e explica-nos: se misturarmos o puré com o molho nunca mais os podemos voltar a separar, é para sempre. Esta é a grande lição de vida que Jaco Van Dormael quer ensinar ao espectador, que a vida só tem um sentido, mas convenhamos, um filme que nos quer ensinar algo tão básico só nos pode estar a chamar de burrinhos.
Mr. Nobody fez parte da selecção oficial de Veneza em 2009, o senhor Dormael já é habitué dos festivais, recebeu a câmara de ouro em Cannes com o seu primeiro filme Toto le héros (Toto, o Herói, 1991) [que foi apresentado à época no Fantasporto, onde venceu melhor filme e melhor argumento e estreou pelas nossas salas no ano seguinte]. O seu próximo filme foi Le huitième jour (The Eighth day, 1996) e desde então os seus trabalhos vinham sendo sobretudo para a televisão belga. Mr. Nobody assinalou o seu regresso às longas e foi um sucesso de público (talvez mais de culto) recebendo o Audience Award nos prémios do cinema europeu. Daí que seja estranho vermos a sua estreia apenas agora nas nossas salas. Casos como este vêm-se tornando cada vez mais regulares: tivemos a estreia de Buried (Enterrado, 2010) o ano passado, quase dois anos da sua estreia fulgurante nos EUA e já depois de ter ganho (e perdido) o hype dos torrents; assim como o último filme de Gaspar Noé, Enter the Void (Viagem Alucinante, 2009), que estreou este ano (numa sala durante uma semana) três anos após se ter estreado em Cannes. O filme de Van Dormael é um desses casos de torrents, as pessoas partilham o ficheiro e o boca-a-boca constrói a popularidade de um filme que não poucas vezes deixa muito a desejar.
A história não é nada simples, mas podemos abreviar a coisa: um menino muito pequenino percebeu que se nunca tivesse que fazer escolhas poderia viver sempre com todas as possibilidades (em vez de se decidir por um palmier ou por um queque, ele prefere ficar com o dinheiro e manter a porta da sobremesa aberta). Isto até que os pais se separam e a criancinha tem que escolher entre um e outro. Neste momento todo o filme se estilhaça (já estava, mas só aqui percebemos o motivo) em todas as possibilidades de vida da criancinha, um homem rico, um pai de família, um mendigo, um indivíduo em coma, por aí fora. A cada bifurcação da sua vida a história divide-se como um fractal. Se a premissa nos parece uma ideia engraçada, percebemos que nada do que aqui estamos a ver é original (e entenda-se que é essa a grande arma de marketing do filme). Façamos a arqueologia: a dita cena em que o menino tem que escolher entre um progenitor e outro faz-se exactamente numa estação de comboio e tudo se decide quando ele apanha ou não o dito, pois bem, os mais cinéfilos lembrar-se-ão de Przypadek (Blind Chance, 1981) de Krzysztof Kieslowski (ou talvez se lembrem da versão americana com Gwyneth Paltrow, Sliding Doors (Instantes Decisivos, 1998), ou ainda de premissa semelhante Lola rennt (Corre, Lola, corre, 1998) de Tom Tyker). Mas se o filme de Kieslowski é um exercício sobre o envolvimento político (e as consequências de se ser um trolha) e o filme de Tom Tyker é um exercício de estilo sobre o efeito de esteróides e meta-anfetaminas, Mr. Nobody quer falar sobre o amor e sobre o destino (e perde-se a cada investida num maralhal de clichés – dois amantes que não se viam desde adolescentes encontram-se no meio de uma multidão e, sem dizerem palavra, abraçam-se como se ele não fosse um mendigo mal cheiroso.
Mas não é só a premissa que já vimos em vários sítios, toda a empresa estilística com enquadramentos estranhos, enormes planos de proximidade, ralentis e montagem de videoclip são já mais que batidos. Podemos pensar em Jaco Van Dormael como o filho estilístico (ainda que seja mais velho) de Darren Aronofsky; o que para muita gente poderá parecer um elogio. Requiem for a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000) era tudo isto, os split screens, as imagens aceleradas e desaceleradas, a montagem doidivanas e foi (e ainda é) um filme com força. Mas talvez seja a The Fountain (O Último Capítulo, 2006) que Van Dormael venha buscar mais inspiração, há coisas no passado e coisas no futuro, há homens muito velhinhos a tentarem lembrar-se de coisas e há criancinhas a lembrarem-se do futuro; mas de novo, se o filme de Aronofsky era um exercício sobre o amor incondicional (isto até parece que é a Rita Blanco a falar) este perde-se no meio de teia que está a tentar coser, tudo nos parece demasiado excessivo, não há tempo para que cada boneco ganhe estofo de personagem, vemos cenas despegadas que são coladas (com cuspo) e com musiquinhas de uma playlist fofinha.
Mas se tudo isto incomoda (dois elefantes incomodam muito mais), o pior vem com a moral de sacola, a referida teoria (do puré) da batata. Todas as opções são as opções certas, a vida é como ela é, e é maravilhosa. Dificilmente podíamos afirmar algo mais abjecto, ainda para mais quando o próprio filme contraria isso mesmo: excesso de demonstrações de virtuosismo digital não melhora o filme (muito pelo contrário). A certa altura pedem ao nosso menino, já velhinho (se dizem mal da maquilhagem do filme do Eastwood deviam ver esta), para explicar como era o mundo quando ele era jovem: era maravilhoso, não fazíamos nada o dia todo, parecia um daqueles filmes franceses [dizendo isto com uma risadinha irónica]. Mr. Nobody é pois uma co-produção europeia com capitais de Canal+ e da France2 e France3; se não há má escolhas, porque será que este filme corre (como a Lola) desse papão do cinema de autor? Porque será que foram buscar Jared Leto para protagonista e filmaram tudo em inglês? Não há más opções mas a do lucro é sempre a melhor.