O efeito especular é sempre poderoso quando acontece: olhamos para um filme e ele, de repente, levando à letra aquilo que Jean-Louis Schefer ensinou a Daney, parece que nos devolve o olhar como uma bola num jogo de ténis. Em certa medida, o filme objectifica-se à nossa frente, “invade-nos” e, por isso, não sabemos o que fazer com ele: ficar com ele? Devolvê-lo? A quem? Para onde? Bem, o convite está lançado: abra os olhos a filmes que nos visitam a nós, tal como nós, na sala escura.
É engraçado pensar como este gesto de filmar mulheres, só mulheres, a assistirem a um filme – não interessa qual – equivale no cinema de Kiarostami a filmá-las à frente do volante de um carro – conduzindo não interessa para onde. E a que distâncias estaremos de falar no volante em badminton ou na bola de ténis de Daney que metaforiza a relação fenomenal entre filme e espectador, entre o que vê e o que é visto? Na minha opinião, a quase nenhuma. Aliás, o cineasta iraniano percebeu, melhor do que qualquer outro, que “ver” é uma prerrogativa predominantemente masculina ou que por tradição a mulher é “vista” pelo homem – no caso de Shirin (2008), historicamente só pelo “seu” homem. Ora, Kiarostami desafiou tudo quando quis filmar, no feminino, a acção de ver um filme e o resultado, espante-se, é desarmante: elas vêem-no, sentem-no, vivem-no como a vida no ecrã, aquela que se encena à sua frente. A nossa acção de ver assiste a uma reacção, a uma resposta (sensorial = social = política = cultural) às imagens do cinema. Estas chegam-nos filtradas (re-conduzidas) por personagens que se “limitaram” a ver e Kiarostami sabe conferir a cada um destes “modos de ver” a força de uma re-volução ou, voltando ao “volante” do badminton invisível que ali se joga, de uma de-volução. Fundamental assistência.
Luís Mendonça
Na semana passada o senhor montador Roberto Perpignani esteve presente na Cinemateca Portuguesa para uma série de 5 sessões, de filmes e história(s) de cinema. O primeiro dos filmes exibidos foi Prima della Rivoluzione (Antes da Revolução, 1964), e foi também o primeiro em que pôde assinar com o seu nome [antes havia trabalhado com Orson Wells em The Trial (O Processo, 1962)]. Bertolucci estava no início da carreira (era o seu segundo filme) e foi muitíssimo influenciado pelos realizadores da nova vaga francesa, tudo é filmado à distância com zooms imensos nas caras dos actores, tudo muito palavroso, tudo muito à flor da pele, prestes a explodir de sentimento. Todo o filme é a preto e branco com excepção da cena acima. Tenho uma coisa para te mostrar, é maravilhoso, é como um filme; é esta a introdução que Fabrizio faz à câmara escura que vai visitar com Gina, ela fica a observá-lo através do espelho e de repente percebemos que a realidade é a cores. Ela, ali, observando-o através daquele meio de proto-cinema apercebe-se que pode falar para o seu amante e confessar-lhe tudo o que a incomoda, sem olhares reprovadores. O cinema é unidireccional por um lado, no entanto é ele mesmo que lhe oferece o mundo a cores, com todas as cores. Ali, no escurinho, ela descobre que o cinema é isto: um meio de chegarmos ao todo e por outro lado de nos distanciarmos de tudo.
Ricardo Vieira Lisboa
Apesar dos Mogwais trazerem instruções um tanto rebuscadas, uma das quais a de que as luzes muito fortes os atordoam (sendo que a luz do sol os mata), não deixa de ser surpreendente, ainda para mais quando convertidos na sua versão maléfica (os ditos Gremlins, tão distantes do original Gizmo, tão fofinho), vê-los a cantarolar a musiqueta dos anões de Snow White and the Seven Dwarfs (Branca de Neve e os Sete Anões, 1937) na semi-escuridão de uma sala de cinema. Como se Joe Dante quisesse dizer (sei que o argumento é de Chris Columbus, mas esta cena é muito danteana) que até o nosso lado mauzinho gosta de uma bela melodia infantil (e também que os “asseados” filmes da Disney para toda a família eram coisas perversas — e eram, felizmente). O certo é que este pequeno prazer (e interlúdio de destruição) dos Gremlins mostrar-se-á fatal, uma vez que os bonzinhos da fita, apanhando-os desprevenidos (como bons espectadores, absolutamente hipnotizados pelo grande ecrã), fazem explodir o cinema com eles lá dentro. Uns bons anitos antes de Tarantino e do seu Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009), Joe Dante já sabia e provava que o cinema (a sala, a arte) pode ser um local perigoso.
João Lameira
Uma mulher come pevides de forma audível e de perna estendida num cinema prestes a ser encerrado. A sala está semi-deserta, os poucos espectadores entram e saem numa espécie de adeus a um qualquer poder hipnótico das imagens. Mas ela é só mais um espectro que ainda habita esse espaço em extinção no filme de Tsai Ming-liang, Bu san (Adeus, Dragon Inn, 2003). Além do filme que passa e que todos vêem, há esse efeito sonoro da velha película de samurais a ser projectado com um eco inolvidável nas paredes de todo o edifício. São “fantasmas” os que percorrem os corredores, os quartos, as casas de banho, como dizendo adeus ao território do cinema. Há um outro espectador semi-incomodado pelo barulho que faz a senhora. Uns segundos antes caiu-lhe um sapato com estrondo. O filme termina. A empregada limpa o chão, o projeccionista rebobina o filme e fecha-se o cinema. Que saudades terão do escuro onde se comia, dormia, chorava. É que o verdadeiro escuro só agora começara.
Carlos Natálio