Quando se trata de adaptações literárias, não é invulgar surgir quem defenda a obra escrita em detrimento da filmada, que uma só se sustenta por causa da anterior, ou inversamente, que uma encontra no insustentável algo onde se apoiar e crescer. Manoel de Oliveira está mais que habituado obrar sobre o texto de outros, mais que isso, sobre grandes obras da nossa literatura; curiosamente nunca o terão acusado de sugar os gostos mais nutritivos de certo texto sem lhes acrescentar nada de seu. Pois bem, O Gebo e a Sombra (2012) é uma adaptação da obra homónima de Raul Brandão, editada nos idos anos de 1923 e é também, por mérito do texto e por mérito de quem o soube ler da forma adequada, das mais políticas obras do mestre Oliveira.
Vivemos num tempo de austeridade, temos correspondentes estrangeiros que cuidam da nossa saúde financeira, temos uma organização política em torno das finanças e temos uma obsessão por contas que batam certo, que não sobre nem isto nem aquilo, que todas as colunas da folha de cálculo cresçam em proporção, educadas e responsáveis. Em O Gebo e a Sombra, o nosso Gebo (Michael Lonsdale) é um homem responsável pela recolha de dividendos de uma grande empresa, Ramires & Ramires. Um homem poupado e simples que trabalha todos os dias com o dinheiro dos outros sem que daí cresça qualquer tipo de tentação (“Nem me lembro que é dinheiro”). Tudo se passa num pequeno quarto e, nesse quarto tudo se passa à volta de uma mesa e, nessa mesa tudo se passa à volta de uma maleta e nessa maleta vivem setecentos mil reis, quase um conto! Come-se nessa mesa, conversa-se, enfim, vive-se, mas o dinheiro está lá sempre (nunca o vemos, só vemos a maleta). Todas aquelas personagens orbitam em torno daquele dinheiro que não se vê. Mas Gebo poisa também em cima da mesa – invade o espaço do lar – os livros de contas, os dinheiros que entram e saem. Enquanto todos conversam e comem lá está ele a remoer os mesmos números: “8 e 7 — 15 e 6 são 21… e vão 2… 715… 90, noves fora nada”.
Curioso será perceber que o texto do Brandão já encontrava os sintomas da crise, já percebia que o dinheiro deixava de ter significado laboral ou mercantil e passava a ser objecto da própria transacção. Se o Gebo já se esqueceu que o dinheiro são coisas, a vizinha, Candidinha (Jeanne Moreau) lembra-lhe, “O que aqui está dentro! (Acaricia) Vestidos de seda, lambarices, coisas boas. Ai, deve ser um regalo ter dinheiro, muito dinheiro! Até parece que dá calor! Ter dinheiro para mandar nos outros, para dizer: — Faça! Rua! Vá! Quem me dera ter uma pessoa em quem eu pudesse mandar à vontade! Não tinha contemplações. E dizer que está aqui dentro…”. A omnipresença dos dinheiros é aliás a causa da ruína da família. Gebo e Doroteia (Claudia Cardinale) têm um filho que fugiu de casa deixando-lhes a esposa (Leonor Silveira) ao cuidado, Gebo trabalha para manter as mulheres e para se manter a si, vivendo segundo o lema – “A felicidade na vida é não acontecer nada”. Isto até que João (Ricardo Trêpa), o filho, regressa. Regressa feito ladrão e assassino, incapaz de aceitar uma vida simples e rotineira como aquela que Gebo e agregado vão levando. E é a dita maleta que causa todos os problemas, que tenta o rapaz e desgraça o senhor.
Mas como digo, Oliveira não se terá limitado a transcrever solicitamente a obra de Brandão, ele percebeu que o cerne da peça, a imagem mais dramática do texto era esta mesma, a transformação de um menino bom num criminoso. Daí que o filme comece exactamente com essa imagem. Depois dos créditos de abertura (num cais) passamos para uma rua escura e do nada, uma mãos surgem do negro e atacam a câmara. Só mais tarde vamos perceber que se trata de uma prolepse, ou para usar os termos do cinema um flahforward. João explicar-nos-á como foi que se virou assassino, “O primeiro que passasse deitava-lhes as mãos às goelas… Ouvi passos no fundo da rua deserta e entranhei-me mais no escuro, pronto a dar o salto… O vulto avançou, aproximou-se, e então eu vi, a meu lado, duas mãos enormes que saíam do escuro — duas mãos sem corpo, iluminadas pelo candeeiro, e que num instante se contraíram no ar, apertaram, sufocaram… Um baque — e deitei a fugir na noite como um insensato… Não fui eu! Não fui eu!…”. Num confronto com a família e amigos que o acusam de não ter alma (“Para praticar um crime é preciso não ter alma”) responde-lhes: “Antes morrer do que viver sepultado”. Oliveira nunca transigiu à tragédia, muito pelo contrário, no entanto trabalhou-a sempre com luvas de concierge, brancas e imaculadas. Para que esta críptica frase faça mais sentido vejamos dois exemplos do trabalho de Oliveira no enquadramento (da imagem e do texto).
O quarto: nos últimos filmes de Oliveira podemos traçar uma trilogia das cidades e dos amores impossíveis [Belle toujours (2006) Paris, Singularidades de uma Rapariga Loira (2009) Lisboa e O Estranho caso de Angélica (2010) Porto – e nos últimos dois já se traçavam linhas sobre a crise]. Neste último não há cidade, não há aldeia, não há nada, só uma casa de três quartos e nós só entramos num deles; aquele que dá acesso aos outros e à rua. Mas será interessante reparar que a estratégia de construir a elipse nos filmes anteriores eram os planos fixos de zonas da cidade entre-cortados com diferentes luminosidades (o arco do triunfo, Alfama e as margens do Douro), aqui o processo de se passar da noite para o dia seguinte é o mesmo, mas em vez de um postal temos simplesmente a porta da casa a diferentes luzes. Se nos outros a cidade era local de possibilidade, aqui já não são precisos milhares ou milhões de habitantes e ruas movimentadas, todo o mundo está ali, entre aquelas quatro paredes. A estratégia de concentração da acção faz com que os momentos no exterior nos pareçam tão impressivos, o primeiro é mesmo a abertura do filme, onde vemos Trêpa junto a um barco, local de saída e de viagem, mas ele não se vai, ele volta a casa (tudo aponta para o centro). O segundo é de novo com Trêpa (a personagem do ir e vir, do movimento, a personagem irrequieta) que abala com o dinheiro roubado, Sofia (a esposa – Leonor Silveira) persegue-o pelas ruas (tudo estúdio) e defronta com uma figura da virgem, e chora olhando para ela, a virgem tudo perdoa e João está já perdoado.
A luz: no texto de Brandão a luz é um tema recorrente (“Deixa-me dar mais luz ao candeeiro”, “A luz hoje não está boa, tu arranjaste o candeeiro?”) e Oliveira percebeu isto tão bem que desenvolveu todo o filme em torno desse pormenor. Chamaram à fotografia de Renato Berta uma tela de Rembrandt, disseram que desde o início do digital que não se via uma fotografia “tão rica nas temperaturas e nas texturas“, e todos disseram bem. Não se disse no entanto que, apesar de toda a acção se passar em tão exíguo espaço, Oliveira conseguiu que cada plano contivesse exactamente no centro do enquadramento um candeeiro a petróleo. Ou seja, a luz é figura central em O Gebo e a Sombra, não seria de estranhar que para haver sombras tivesse que haver uma obsessão com a luz. A luz é aquilo que permite que não se veja o assassino-João, é ela que permite que o Gebo continue as contas noites dentro, é ela que impossibilita que Chamiço (Luís Miguel Cintra) possa actuar de noite – por causa do preço do combustível. E é derradeiramente a luz que traz os carcereiros de Gebo, primeira e única vez que vemos a luz do dia naquela casa, primeiro e “único momento em que Gebo, de frente para a luz do sol, projecta uma sombra“.
Mas a peça de Brandão tem quatro actos, Oliveira apaga o último (aquele em que Gebo sai da prisão depois de três anos de cárcere, e liberta-se da sua figura simples e subserviente, acabando tudo numa libertação da vida humilde, ainda que pobre na mesma) e comprime o terceiro, retira tudo aquilo que Brandão tornava explícito e faz disso subtexto (a cena da virgem, por exemplo). Mas a tudo isto há que acrescentar que parece que é preciso ter 103 anos para conseguir filmar tão graciosamente actores de tão respeitoso nome, veja-se a cena em que Luís Miguel Cintra explica como conquistou a sua mulher com apenas as notas de uma flauta, ou como pede licença para beber o café ‘por baixo’, isto é, pelo pires porque está demasiado quente. No meio de toda aquela sombra há espaço para umas réstias de luz, mesmo que essa luz traga a condenação de um inocente, ou nem tanto.